Coluna do Fernando Luna: Quem dorme é a cama — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Quem dorme é a cama

Nesta ‘Antologia Profética’, versos desgraçadamente atuais sobre como um colchão pode arruinar sua vida, os usos e costumes da máscara, um samba sobre o infinito e o que acontece com sonhos adiados

28 de Março de 2022

Deitamo-nos e quem dorme é a cama

Mia Couto, 2006

Comprei um colchão. Dito assim, parece trivial.

Na-na-ni-na-não. Não se engane. Esse é um dos desafios mais complexos que um ser humano pode enfrentar: quando compra um colchão, você compra o lugar onde vai passar um terço da sua vida pelos próximos anos.

Aí a pressão aumenta.

Se tudo der certo e sua ansiedade deixar, você e seu colchão vão ficar juntinhos oito horas por dia – ou melhor, por noite. Então, o que poderia ser apenas uma compra de impulso vira uma investigação científica.

Espuma, mola ou espuma com mola? Mola ensacada, Bonnel, Verticoil, Superlastic, LFK ou Miracoil? Espuma convencional, látex, viscoelástica, viscoelástica gel ou Rabatan? Densidade D26, D28, D33, D40 ou D45?

Pillow top por cima de tudo?

Você talvez não saiba, como eu desavisado não sabia, mas sua vida inteira depende disso. Um colchão errado arruína sua existência.

Primeiro, acaba com seu sono. Sem seu sono, você não consegue sorrir, socializar ou trabalhar direito. Sem trabalhar direito, você pode perder seu emprego. Sem seu emprego, seu sono acaba de vez e você fica se revirando em loop na cama – praguejando contra o colchão.

Porém, ignorando completamente todo esse raciocínio lógico e elementar, me meti a comprar um colchão pela internet, sem experimentar.

Sei que é hoje possível comprar de tudo pela internet: órgãos vitais, drogas pesadas e armamento nuclear. Quem quiser que tente a sorte. Mas nunca, jamais, em tempo algum, compre um colchão como eu comprei.

Apenas cliquei no anúncio de uma dessas startups que se mete a fabricar colchão em vez de NFT.

Deu no que deu: chegou na minha casa uma caixa de tamanho incrivelmente reduzido, com um colchão de dois metros enrolado e espremido dentro dela. Achei que era um colchão d’água daqueles de “Licorice Pizza”.

Quem dera. Um colchão d’água seria menos quente e teria menos cheiro de cola. Cada noite virou um seminário sobre os versos do poema “O Tempo e seus Suspiros”, do moçambicano Mia Couto: quem dorme é a cama – e só ela.

Já pedi meu dinheiro e minha vida de volta.

Argumento/ Mas se todos fazem

Francisco Alvim, 2000

Pode ficar sem máscara em lugares fechados? Pode. É de bom tom? Depende.

Sábado fui à Oca, o edifício mais bonito do paulistaníssimo Parque do Ibirapuera, onde acontecia uma feira de arte. Na véspera a cidade dispensara o uso obrigatório de máscara, exceto no transporte público e nas unidades de saúde, e me empolguei.

A maioria dos visitantes, também: sorrisos à mostra zanzavam pelas rampas curvilíneas desenhadas pelo Oscar Niemeyer. Até encontrei uma amiga mascarada, que logo se apressou em tirar a máscara pra papear, como se fosse rude manter o rosto coberto diante de alguém descoberto.

(Como no micropoema de Francisco Alvim, publicado no livro “Elefante”, fazer o que a maioria faz é mais simples e economiza explicações, mesmo quando isso faz pouco ou nenhum sentido.)

No dia seguinte, fui ao Sesc Pinheiros ver “Encantado”, o novo e incrível trabalho de Lia Rodrigues. A coreografia é livremente inspirada nas entidades sobrenaturais que habitam “Torto Arado”, o romance brasileiro mais incontornável dos últimos anos.

Todos os 1010 lugares do teatro pareciam ocupados. Passei os olhos na platéia e calculei: mil e nove pessoas usavam máscara cobrindo nariz e boca, conforme a recomendação dos alto-falantes. Apenas uma única, solitária e deslocada figura tava desmascarada – eu.

Foi como um sonho deveras realista de chegar pelado no trabalho.

Os olhares de soslaio aumentavam o desconforto palpável de quem tem plena consciência do figurino inadequado. Tipo vestir um colete de gominhos da XP na Ocupação 9 de Julho, só que pior.

Solidária, minha companheira manteve sua máscara na bolsa. Amar é passar vergonha junto. Nunca me esquecerei, Carol. Enquanto isso, eu passava pano mentalmente pra mim mesmo: 100% dos adultos que vivem em São Paulo tão imunizados, 70% tomaram a dose de reforço, diz o Vacinômetro.

O maior problema provavelmente nem era mesmo sanitário. Era ser confundido com negacionista ou, desgraça das desgraças, com bolsominion. Aí não. Na hora dos aplausos, em vez de “Bravo!”, gritei “Viva o SUS!”.

Meu coração tem mania de amor/ amor não é fácil de achar

Paulinho da Viola, 1969

Por quase duas horas, só existia Paulinho da Viola.

Ucrânia, Rússia, Brasília, cenoura a 15 reais, gasolina a nove, MBL, Jade Picon, beach tennis, segunda-feira, boleto, pacote da destruição, pandemia – tudo sumiu numa pausa de mil compassos, enquanto ele tocava um samba sobre o infinito atrás do outro.

O teatro do Sesc Pinheiros lotado no domingo à noite virou uma Zona Autônoma Temporária: ninguém sequer precisou gritar “Fora, Bolsonaro”, como se tornou praxe em qualquer show que se preze, porque era evidente que Bolsonaro tava fora daquele mundo.

Paulinho da Viola é o oposto do Brasil de hoje – pro azar do Brasil.

Se o país elegeu um governo que odeia a cultura (detesto lembrar isso, mas foi o país que elegeu esse governo), Paulinho é o melhor da cultura. Se o país vulgarizou ao máximo o espetáculo da sociedade, Paulinho segue discretíssimo até quando todas as luzes do palco estão em cima dele.

Paulinho da Viola é o oposto do Brasil de hoje – pra esperança do Brasil.

Se o ódio é o humor dominante destes dias, Paulinho tem mania de amor, como canta em “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”. Esse samba perfeito, lançado como modesto lado B do compacto “Sinal Fechado”, batizaria seu segundo álbum solo, marcando sua carreira e a vida da gente.

Amor não é fácil de achar, mas lá tinha de sobra. Paulinho provoca esse efeito ocitocina na platéia. Os casais se beijam, as senhorinhas dançam nas poltronas sacudindo os ombros, a criança engole o choro diante da serenidade radical do homem de 79 anos, vestido de branco do cabelo aos pés.

Dessa vez, ele dividia boa parte da cena com dois filhos, a cantora Beatriz Rabello e o violonista João Rabello.

Sim, outra linhagem nobre da MPB, a Música Parental Brasileira, como Dorival, Nana, Dori, Danilo e Alice Caymmi; João, Astrud e Bebel Gilberto; Tom e Maria Luiza Jobim; João e Diogo Nogueira; Chico, Miúcha e Cristina Buarque; Martinho e Mart’nália; Gil, Preta Gil e Gilsons; Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso; Fábio Júnior e Fiuk – opa, só checando se você ainda tava prestando atenção.

O que acontece com um sonho que se adia?

Langston Hughes, 1951

Se o ano só começa depois do carnaval, feliz 2020, 2021 e 2022 pra nós.

Pelas minhas contas, estamos três réveillons e dois carnavais atrasados. Vou cobrar com juros, juro, todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro – porque quando 2020 parecia enfim começar, pandemia não deixou.

Daí passamos os dois últimos anos tentando nos convencer, a despeito das evidências, que só mais um mês, no máximo dois, e tudo voltaria ao normal – embora ninguém soubesse dizer o que seria o velho normal, muito menos o novo.

Ninguém sabe, também, o que exatamente marca o final de uma pandemia. Queda nas taxas de contaminação? Diminuição do número de mortes? Despreocupação quando alguém tosse por perto? Uma canetada do prefeito?

Seja como for, o mundo dá sinais de que quer recuperar logo o tempo perdido. A roda da história voltou a girar em velocidade máxima e, ansiosa, deu um jeito de juntar num único conflito a angústia da guerra fria com o horror da guerra quente.

(Com direito a “cameo appearance” do Mamãe Falei no teatro de operações, o que prometia apenas um alívio cômico involuntário, mas terminou como um resumo da boçalidade em que submergimos desde o impeachment.)

Assim como os acontecimentos públicos, a vida privada volta a ganhar tração.

Onde a gente tava mesmo, quando fomos interrompidos pela pandemia? Pensando em trocar de emprego? Tentar uma nova carreira? Terminar um relacionamento? Planejava ter filhos? Mudar de casa, mudar de país, mudar alguma coisa que nem sabia direito o que era, embora sentisse claramente que precisava mudar alguma coisa?

Mas o que acontece com o sonho que se adia?

Protagonista do movimento cultural conhecido como Renascimento do Harlem, Langston Hughes arrisca algumas respostas que soam como perguntas. O sonho “seca como uva-passa ao sol? Ou infecciona como uma ferida – e depois escorre? Fede como carne podre? Ou se cobre de crosta açucarada – como um doce? Talvez afunde com sua pesada carga. Ou explode?”.

Só uma certeza: a gente acaba descobrindo.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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