Não quero faca nem queijo. Quero a fome — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Não quero faca nem queijo. Quero a fome

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre a mulher 40+, o homem explosivo, o sorriso de Eunice Paiva e a mistura de Finados, Halloween e Día de Los Muertos

25 de Novembro de 2024

Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome

Adélia Prado, 1978
Antologia Profética

Existe um antídoto para “A Substância” – e pra sensação brutal de inadequação que o filme retrata e atinge tantas mulheres após os 40 anos.

Basta um mundo sem machismo nem etarismo.

Como isso é improvável nas próximas décadas, vale experimentar o melhor tratamento disponível: o romance “De Quatro”, de Miranda July, multiartista norte-americana.

Assim como o longa de Coralie Fargeat, o livro gira em torno de um medo que parece superficial e frívolo, mas é profundo e essencial – o medo de perder a própria identidade junto com o colágeno.

Entre a autoficção e a autofricção – masturbação e sexo sem penetração nunca foram tão eróticos numa página –, acompanhamos uma mulher de 45 anos numa travessia de carro entre Los Angeles e Nova York. Ou quase.

A jornada mal se inicia e já acaba.

Trinta minutos depois de se despedir do marido e do filho, uma criança não-binária como a de July, ela desiste da estrada e se hospeda num hotelzinho ordinário. Um pouco porque “quem pode explicar por que alguém faz determinada coisa?”, um pouco porque se encantou com Davey, 31 anos, que limpou seu para-brisa no posto de gasolina local.

Aí começa a viagem de verdade.

Ela já havia de apaixonado e caído na fantasia antes. “Mas dessa vez era diferente de todas as outras coisas anteriores”, principalmente porque “eu era velha demais para ele” – e essa constatação “foi como receber uma porrada na cabeça no meio da noite”.

Em “Tempo”, Adélia Prado expressa um desencontro parecido entre o corpo e o mundo: “Neste exato momento do dia vinte de julho,/ de mil novecentos e setenta e seis,/ o céu é bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio.”

Se “A Substância” é uma versão de “Barbie” com vísceras expostas, “De Quatro” é Virginia Woolf na perimenopausa, redescobrindo a liberdade, o desejo e a fome em “um quarto só seu” num hotel de beira de estrada.

No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho

Carlos Drummond de Andrade, 1928

Nunca é um fato isolado. Precisou acontecer muita coisa antes do encontro mortal de Francisco Wanderley Luiz com a estátua “A Justiça”.

Há uns 600 milhões de anos, um rio de magma se solidificou e formou uma longa camada subterrânea de granito, exatamente no lugar que hoje chamamos de Petrópolis.

Nos idos de 1960, uma pedreira local arrancaria dali um bloco de 3,3 metros por 1,48 metro. Encomenda do escultor Alfredo Ceschiatti, a quem Oscar Niemeyer havia pedido um monumento pro Palácio do STF.

A pedra ganharia forma de “A Justiça”. Foi instalada de costas pro Supremo, mas caprichosamente alinhada à rampa do Palácio do Planalto – um lembrete de que a justiça, mesmo cega, tá de olho até no presidente.

Jair Bolsonaro subiu essa rampa em 2019 – e cismou em não descer mais de lá.

Já em 2020, ele fez uma live pra discutir “a politização no STF e a aplicação pontual do artigo 142”, especulação golpista sobre intervenção militar no judiciário. No Sete de Setembro do ano seguinte, gritou “que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá”.

E “A Justiça”, do outro lado da Praça dos Três Poderes, só espiando.

Em 2022, às vésperas da eleição que perderia, Bolsonaro disse que “alguns ministros de STF têm rabo preso”. Derrotada, a turma do acampamento do quartel-general até botou fogo em ônibus pra tumultuar. Ainda tentaram explodir o aeroporto de Brasília, com uma bomba num caminhão-tanque.

A Festa da Selma aconteceu em 8 de janeiro de 2023. Um ataque aos três poderes, na expectativa de deflagar um movimento nas casernas. “A Justiça”, alvo preferencial, ganhou uma cicatriz-pichação: “Perdeu, mané”.

Após mais uma profusão de delírios antidemocráticos da extrema-direita, um ex-candidato a vereador pelo PL decidiu resolver as coisas na marra. Tinha uma pedra no meio do caminho: ele se matou após atacar, em vão, “A Justiça”.

E contra o mal – a bondade, e contra a dor – a alegria

Teixeira de Pascoaes, 1949

“Ainda Estou Aqui” é um filme sobre não esquecer.

Não esquecer a história, a violência da ditadura, os cartazes pedindo a volta dos militares nas passeatas da extrema-direita. Não esquecer Jair Bolsonaro homenageando o torturador Brilhante Ulstra no Congresso Nacional, nem o cinismo do artigo assinado hoje pelo ex-presidente na “Folha de S. Paulo”, pedindo respeito à democracia após seu golpe frustrado.

Mas é, principalmente, um filme sobre não esquecer de sorrir.

“Não precisa sorrir”, diz o fotojornalista para Eunice Paiva, atuação tão extraordinária de Fernanda Torres que a gente esquece de elogiar Selton Mello e Fernanda Montenegro quando sai da sessão. “O editor pediu uma foto menos feliz.”

Ela, que posa pra uma reportagem-denúncia ao lado dos cinco filhos em frente à casa onde morava com o marido Rubens Paiva, deputado cassado e assassinado pelo regime militar, retruca e convoca as crianças: “Nós vamos sorrir. Sorriam”.

Sorrir é o melhor revide possível. Fazer da alegria uma trincheira pra lutar e proteger o que restou de sua família.

“Contra a dor – a alegria”, escreveu Teixeira de Pascoaes, o maior poeta português desconhecido no Brasil, quando a ditadura salazarista estrangulava a terrinha.

Walter Salles fez um filme amoroso e político.

O amor tá escancarado na cumplicidade do casal, no entra e sai animado dos filhos e amigos, na música alta, na dança, nos mergulhos no mar, no ritual com o dente-de-leite da filha mais nova, nas conversas na sorveteria, na luz e nas cores que dominam todo o início do filme.

A política aparece brutal como nunca, sem recorrer a cenas de tortura. Basta mostrar como o estado se empenha em destroçar aquilo que alega proteger, especialmente quando é dominado pelas forças mais reacionárias: a família.

Em vez de propor boicote ao filme em grupos de zap, os defensores da família brasileira deviam ir ao cinema.

Dança e respira, respira e dança a vida

António Ramos Rosa, 1969

O feriado de Finados foi duplamente sincretizado: primeiro pelo Halloween dos americanos do norte, depois pelo Dia de Los Muertos dos americanos um pouco menos ao norte.

Antes, Dois de Novembro era só lamúria.

Dia de família visitar cemitério, perdida pelas aleias entre jazigos anônimos e mausoléus famosos, até achar o túmulo certo. E, então, deixar ali flores frescas que logo teriam o mesmo destino do morador local.

Tudo debaixo de chuva fina – mesmo o ateu mais renitente reconhece que sempre chove em Finados.

Halloween, por sua vez, era apenas “Halloween”: o filme apavorante do John Carpenter, que acabei assistindo quando minha tia alugou o VHS.

Tinha terror demais e sacanagem de menos pra um pré-adolescente em erupção hormonal – até hoje pelejo pra manter trancado num quarto escuro da memória aquele cara mascarado empunhando um facão.

Achei uma papagaiada quando começou essa conversa de “travessuras ou gostosuras” no lado de baixo do equador. Fechei com a turma decolonial, celebrando o saci-pererê em vez da bruxa de Salem.

Adotar o Día de Los Muertos também parecia uma pataquada. Meu Policarpo Quaresma interior torcia seu nariz nacionalista pra mais essa invasão cultural.

Ah, pelo menos os mexicanos são latinos como nós. Sejamos honestos: o embalo das caveirinhas coloridas chegou mais pelo desenho da Disney que por férias em Oaxaca. Era só um jeito de disfarçar o Halloween.

Pois bem, corta pra sábado à noite e lá tô eu na pista duma festa de Halloween. Ou de Dia de Los Muertos. Ou, sei lá, de Finados. O Brasil precisa mesmo de toda festa que puder festejar. Como insiste Luiz Antônio Simas, citando Beto Sem Braço, “o que espanta a miséria é a festa”.

E tem jeito melhor de homenagear quem não tá mais aqui do que exercitar a alegria de estar vivo? Então, “Dança e respira, respira e dança a vida”, como escreveu o português António Ramos Rosa.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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