Deus existir ou não: o mesmo escândalo — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Deus existir ou não: o mesmo escândalo

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre os deuses olímpicos, o meme como modalidade esportiva, os heróis da desistência e a foto (sim, aquela foto)

05 de Agosto de 2024

Deus existir ou não: o mesmo escândalo

Orides Fontela, 1998

Se deus é brasileiro, ele não liga pra esporte.

Só isso explica a modesta posição do Brasil no quadro de medalhas olímpicas — apesar do desempenho divino de Rebeca Andrade pra tentar corrigir isso.

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Não é por falta de oração que a delegação brasileira não corre mais rápido, salta mais alto ou marca mais pontos.

É rara, raríssima, uma entrevista em que um atleta ou um torcedor daqui não use seu santo nome mais ou menos em vão. “Se deus quiser” e “Graças a deus” são evocados antes ou depois das disputas, na alegria ou na tristeza, na vitória ou na derrota.

Num levantamento global do instituto Ipsos, o Brasil foi campeão mundial na categoria espiritualidade: 89% dos compatriotas dizem acreditar em deus, o número mais alto entre os 26 países pesquisados.

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Enquanto isso, a descrente China com seu ateísmo de estado vive lá no alto do ranking. E a Índia, com seu panteão abarrotado por milhares de deuses e deusas, lá embaixo na classificação.

Isso é falta de deus. Ou excesso?

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Secar o próximo é ter fé pelo avesso.

Nessa seita, César Cielo é nosso pastor e nada nos faltará. Faltará, porém, braço a todos os nadadores que desafiarem seu recorde mundial.

Minutos após a prova de 50 metros livres em Paris, que terminou sem triscar sua marca histórica de 20s91, Cielo postou: “O homem mais rápido do mundo desde 2009”.

Secação é mais.

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A ginasta Julia Soares pode abrir uma igreja: ganhou mais de 2 milhões de seguidores numa semana. Chegou a Paris com 56 mil, saiu com 2,3 milhões.

O milagre da multiplicação dos followers é a nova fonte de renda dos atletas.

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Depois de levar o bronze no street skate, Rayssa Leal pendurou um crucifixo no pescoço. Depois da ganhar o ouro na individual geral de ginástica, Simone Biles exibiu um pingente de bode — não o bode expiatório do Antigo Testamento; o acrônimo inglês GOAT, “Greatest Of All Time”.

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Superstição é a religião dos outros.

Se você for tentar, vá até o fim. Caso contrário, nem comece

Charles Bukowski, 1991

Como até breaking virou esporte olímpico, o COI podia incluir mais uma modalidade: meme. O Brasil seria imbatível.

Se procurar direitinho na internet, encontra um Usain Bolt de meme em Salvador, uma Nadia Comaneci de figurinhas em Belém, um Michael Phelps de post no Rio de Janeiro.

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Paulo Prado vaticinou em “Retrato do Brasil”: “Numa terra radiosa, vive um povo triste”.

Quase 100 anos depois, a gente chora quando vence (William Lima no judô), a gente chora quando perde (Cachorrão na natação), a gente chora no sofá assistindo tudo isso pela tevê.

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O Brasil se destacava em esportes coletivos, como futebol, vôlei e basquete masculinos e femininos. Nestes tempos de cada um por si, modalidades individuais como skate, surfe, judô e ginástica têm trazido mais alegria.

Coincidência ou sociologia do esporte?

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O Japão é a Argentina das Olimpíadas.

Domingo, nossa rivalidade esportiva mais tradicional mudou de nacionalidade. Na pista de skate, no tatame e até no campo de futebol, a delegação japonesa tirou dos hermanos do posto de nêmesis oficial do esporte brasileiro.

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O velho safado e beberrão Charles Bukowski, quem diria, tem algo de olímpico. Os versos “Se você for tentar, vá até o fim. Caso contrário, nem comece” podiam estar gravados nas medalhas.

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A cerimônia de abertura, francamente…

Tirando a pira olímpica no balão e o esforço inclusivo louvável, parecia dispersão de escola de samba do grupo de acesso. Ah, mas o show de luzes na Torre Eiffel não tava lindo? Já vi o Alok fazer melhor.

Ainda dá tempo de preparar um encerramento mais alinhado ao espírito francês: um debate de 3 horas em rede mundial com Michel Onfray, Élisabeth Roudinesco e Bernard-Henri Lévy não pode ser mais aborrecido que a procissão de barquinhos.

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Enquanto isso, na Venezuela: muito Nicolás Maduro, pouco Barão de Coubertin. O importante não é competir, mas vencer.

Desista, que a vida é incerta. Ou insista. Dá no mesmo

Paulo Henriques Britto, 2012

Joe Biden desistiu – mas ninguém falou em fracasso, a palavra frequentemente associada à desistência.

Ao contrário do que acontece quando alguém desiste de um objetivo, ele foi celebrado e não criticado. “Biden fez o que Trump nunca fará: colocou o interesse nacional acima de seu orgulho e ambição”, resumiu um editorial do The New York Times.

O ex-presidente Barack Obama definiu no mesmo tom a decisão: “É um testemunho do amor de Joe Biden pelo país — e um exemplo histórico de um verdadeiro servidor público mais uma vez colocando os interesses do povo americano à frente dos seus próprios”.

Será que Biden levou pra sua casa de férias na praia de Rehoboth, no Delaware, o livro mais recente de Adam Phillips, “Sobre desistir”? À beira-mar, teria lido o psicanalista britânico sugerindo encarar a desistência não como derrota, mas como “uma maneira de obter sucesso em outra coisa”?

“Não conseguir desistir é ser incapaz de aceitar a perda, a vulnerabilidade”, continua Phillips. É “ser incapaz de aceitar a passagem do tempo e as revisões que ele traz.” Aos 81 anos e oito meses, o presidente aceitou a passagem do tempo – e ainda lançou a campanha de Kamala Harris.

Agora, como tudo é relativo, sobrou pra Trump a pecha de ancião concorrendo à presidência dos Estados Unidos. Subitamente, o discurso etarista dos últimos meses foi arremessado de volta em sua cara, como um bolo de aniversário com 78 velinhas.

Só um acontecimento excepcional pode anular o efeito eleitoral de outro acontecimento excepcional. Se a vitória do republicano parecia jogo jogado após o atentado na Pensilvânia, esse plot twist duplo carpado na canditatura democrata parece capaz de embaralhar as cartas.

Quando os americanos do norte forem às urnas, descobriremos se desistir foi melhor que insistir – ou se deu no mesmo, embora a gente nunca vá saber ao certo que mesmo seria esse.

Perder uma fotografia é perder um momento duas vezes

Daniel Jonas, 2013

A gente perde um momento quando, como no meme, fica mais preocupado em postar que em viver.

Atentos a ângulos e enquadramentos pras redes sociais – “Peraí, só mais uma foto na vertical” –, encaramos o celular em vez de olhar o mundo. Deixamos de lado o acontecimento, em busca do compartilhamento.

Mais tarde, esse exato registro desaparece entre outros 30.693, armazenados em centenas de gigabytes no seu bolso. Sobra alguma “Nostalgia”, poema do português Daniel Jonas, publicado em “Passageiro frequente”.

Donald Trump, porém, encontrou uma fotografia no comício em Butler.

Claro que o fotógrafo da agência de notícias Associated Press, Evan Vucci, fez magistralmente sua parte: manteve a calma em meio a um tiroteio, arriscando a vida atrás da melhor posição pra registrar a cena.

Único fotógrafo a desembarcar no Dia D com as tropas aliadas em Omaha, Robert Capa disse que “se suas fotos não estão boas o suficiente, você não está perto o suficiente”. Vucci tava perto o suficiente e chegou ainda mais perto.

Mas era coadjuvante ali.

Trump não era apenas o protagonista, era também o diretor. Como um Cecil B. de Mille de si mesmo, dava ordens aos agentes de segurança que gritavam “temos que sair logo daqui, senhor”: “Esperem, esperem, esperem…”.

A foto ainda não existia.

Animal midiático, Trump intui que deve se recompor. Em meio ao escudo humano formado à sua volta, encontra espaço pra levantar o braço direito. Cabeça erguida, soca o ar com o punho fechado, enquanto brada à multidão e às câmeras: “Lutem!”.

A foto, afinal.

Rosto ensanguentado e desafiador, olhar de quem não se intimida diante de um fuzil, bandeira dos Estados Unidos ao fundo praticamente de cabeça pra baixo – um código que sinaliza perigo iminente. Perigo pro candidato na mira do Adélio do norte, pro país mais poderoso do mundo diante de sua provável vitória eleitoral, perigo pro próprio mundo.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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