"Priscilla" e as memórias coletivas das mulheres — Gama Revista
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“Priscilla” e as memórias coletivas das mulheres

Sofia Coppola é delicada e crítica ao demonstrar que, longe de jornadas de heroína romântica ou leituras simplificadas de empoderamento, o caminho de autonomia feminina é complexo

Marília Ariza e Paulo Augusto Franco 29 de Janeiro de 2024

“Priscilla” (2023) é o mais recente filme dirigido por Sofia Coppola. Nele conhecemos as memórias de Priscilla Presley publicadas antes no livro “Elvis and Me” (1985). Nada nas telas parece se tratar de uma simples narrativa biográfica caracterizada por aquele suposto heroísmo tão próprio a esse gênero. O foco não está em Elvis, tampouco nas grandes narrativas Hollywoodianas que trataram de vesti-lo como o “rei do rock”. O protagonismo é todo de Priscilla, até então, uma personagem pública relegada às sombras do namorado/marido: o “gênio”. Ao nosso ver, o filme de Coppola descongela e subverte as tão conhecidas fotografias da fama, imagens que foram tornadas cenas estáticas no tempo. Nelas podíamos ver apenas uma jovem mulher posando ao lado de seu belo “rei” que, por sua vez, ostenta uma esposa sorridente, superficial e esteticamente irretocável.

As primeiras sequências do filme nos apresenta Priscilla Beaulieu, uma jovem de 14 anos que mora com os pais num regimento militar norte-americano na Alemanha ocidental, em plena Guerra Fria. É na pacata cidade de Bad Nauheim que ela conhece o sargento Presley. Os enquadramentos, na escala evidente, dramatizam o encontro apaixonado: desde a diferença de estatura entre ambos até a indumentária. Os contrastes entre a menina e o homem, entre o anonimato e a fama, entre o tédio e a excitação já tratam de encenar o futuro. Em pouco tempo vemos a transformação rápida de Priscilla. O vestido de corte romântico com cores sóbrias da menina inocente passa a conviver com a maquiagem borrada pelas emoções e desejos da mulher que acaba de retornar de uma estada com o namorado em sua mansão em Memphis, nos EUA. A escola e a adolescência provinciana tornam-se uma prisão telúrica para quem já sonha longe.

Priscilla deixa os pais e se muda para Graceland – por anos, antes de finalmente casar-se com Elvis. Vive ali um anonimato em tudo oposto à fama superlativa do namorado. Sua vida nova e secreta, contudo, não dissipa o ar de deslocamento experimentado na Europa – pelo contrário, parece acentuá-lo, traduzindo-o, apesar da aura de sonho, num cotidiano de solidão cortante e permanente inadequação.

O mundo de Priscila, neste momento, orbita a expectativa de reencontrar o amado, sempre ausente: é uma estudante desinteressada e uma jovem entediada que procura distrações para preencher dias vazios. Os sapatos de salto com suas solas sempre limpas praticamente só conhecem os tapetes felpudos da mansão. A imensa propriedade é seu mundo inteiro — a princípio vasto, com seus jardins imensos e salas repletas de móveis claros e adornos luxuosos, mas quase sem presença de energia humana, ela é, afinal, grande apenas no tamanho da solidão que proporciona. Paradoxalmente, ali Priscilla constrói um universo social e cultural apequenado, alienado na imaginação solitária e algo infantil de amor romântico e completamente desvinculado das dinâmicas que faziam da década de 1960 um período de intensa vivacidade para jovens como ela — o movimento de direitos civis, as tensões da Guerra do Vietnã, as experimentações com a contracultura e as drogas, e os ensaios de liberação sexual feminina.

Essas duas últimas dimensões de possível subversão do projeto amoroso conservador de Priscilla e Elvis são, inclusive, objeto do olhar afiado de Sofia Coppola. As pílulas para dormir e acordar consumidas por ele e, logo, também por ela, significam pouca ou nenhuma transgressão; a viagem lisérgica de ácido que protagonizam no quarto escuro, onde os vemos isolados repetidamente, é autorreferente, pouquíssimo imaginativa, quase decepcionante.

Priscilla é uma espécie de bibelô, um objeto na decoração da imensa casa, uma personagem marginal da fotografia do astro em sua mansão

É sobretudo a captura da sexualidade de Priscilla pelo controle tirânico de Elvis, que denuncia os limites da vida a princípio ousada que a jovem criou para si: ele constrange seu desejo — primeiro o estimula, e depois lhe põe freios, dela retirando o controle sobre a própria sexualidade. Ao mesmo tempo, controla seu corpo e sexualiza a menina de feições angelicais: tinge seu cabelo, escolhe suas roupas e tenta redesenhar o seu sorriso, esvaziando a autonomia de forjar para si uma nova imagem de mulher. Essa tensão entre a sexualização autoritária e a esterilização da sexualidade de Priscilla está também traduzida na imagem da estudante de maquiagem pesada, cabelos escuros e uniforme escolar – algo entre a ingenuidade de menina e sua fetichização. Assim, Priscilla é, para Graceland e seu dono, uma espécie de bibelô – um objeto na decoração da imensa casa, uma personagem marginal da fotografia do astro em sua mansão, sentado à poltrona, criança no colo e esposa ajoelhada ao lado.

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Mas eis aqui um ponto que nos parece fundamental. Em nenhum momento, contudo, a diretora sugere que a relação distanciada de Priscilla com o mundo a seu redor e a intromissão de Elvis Presley na imaginação que faz de si mesma sejam expressão de uma vida interior adormecida. Pelo contrário, há uma contraposição marcante entre a esterilidade do mundo exterior e a intensa angústia do mundo interior de Priscilla – angústia essa que, afinal, é subvertida numa atitude de enfrentamento e busca por autonomia.

Encontramos no filme, desse modo, uma janela interessante para pensar a agência e o protagonismo feminino — Coppola é delicada e crítica ao demonstrar que, longe de jornadas de heroína romântica ou leituras simplificadas de empoderamento, o caminho de autonomia feminina é complexo: é a história da menina que enfrenta os pais para cruzar o mundo e viver o amor que sonha; é a contestação da tirania do namorado e marido, e os recuos diante do medo de perdê-lo ou desagradá-lo; é a relação com o corpo que se renova na prática das artes marciais — e também na sugestão de um caso amoroso com seu professor. É, por fim, a decisão de reclamar a própria história e partir, deixando para trás, com esforço e com certeza, um sujeito esgotado, autocentrado e entregue à penumbra de um quarto de hotel. É bonita, ainda que literal, a imagem de Priscilla dirigindo o carro, cruzando os portões de Graceland, enquanto Dolly Parton — cantora que desafiou o gênero country, até então, tão dominado por homens — canta no rádio a dor de “I will always love you”…

Ao subverter o projeto amoroso na matriz reprodutiva do patriarcado que tanto tenta confinar a mulher ao “culto da domesticidade”, para usar a expressão da escritora Anne McClintock, “Priscilla”, de Coppola, descongela e recusa as fotografias da família e da fama nos padrões Hollywoodianos. São imagens emolduradas em porta-retratos que exibem, como monumentos, o sonho norte-americano tão repleto de padrões misóginos: um sistema organizado de imagens. Podemos por aí, finalmente, arriscar que os arquivos de “Priscilla” são, de certo modo, memórias também coletivas. Eles vocalizam trajetórias de muitas mulheres públicas confinadas às sombras e aos lares claustrofóbicos de seus “reis” -, Diana e Jackie Kennedy, retratadas por outro sensível realizador, Pedro Larraín, Maria Antonieta, também de Sofia Coppola, e, no limite, a própria diretora, cujo sobrenome de peso já sugere ser ela mesma uma personagem, mesmo que não explícita, em seus filmes.

Marília Ariza é historiadora, professora, doutora e pós-doutora pela USP

Paulo Augusto Franco é antropólogo, pós-doutor e pesquisador da USP, professor do curso de Direito da ESPM-SP