Parece inocente, mas é xenofobia — Gama Revista
Artigo

Parece inocente, mas é xenofobia

A redução do Nordeste e dos nordestinos em frases supostamente gentis dialoga com a depreciação da mão de obra migrante do início do século 20, e serve o puro suco do racismo

Octávio Santiago 06 de Outubro de 2023
Isabela Durão

Imaginar um Sudeste no qual paulistas e capixabas têm uma única aparência física e mineiros e fluminenses falam com o mesmo sotaque parece um exercício criativo um tanto difícil. Porém, reducionismo similar segue recorrente em relação ao Nordeste, manifestado em frases aparentemente inocentes e até elogiosas, mas que demandam uma urgente ultrapassagem.

Essa homogeneização a qual o Nordeste e o seu povo são submetidos – mesmo abrigando nove estados e quase 60 milhões de pessoas –, já seria um equívoco se atestasse apenas desinteresse ou desconhecimento por essa porção de Brasil, mas suas raízes têm origens mais perversas. A redução da região e das pessoas que nela habitam dialoga com a depreciação da mão de obra migrante do início do século 20, e serve o puro suco de xenofobia e racismo.

A manifestação desse preconceito secular ainda acontece em bom som, à luz do dia, e encontra na inofensiva “Ah, mas você não tem cara de nordestino” uma das suas formas mais costumeiras, em todos os sentidos que a palavra admite. Podendo ocorrer com um tom maior de incredulidade na variação igualmente comum “Nem parece que é nordestino”.

O povo do Nordeste não tem uma cara. Isso é invento, com camadas e camadas de estereotipação

A saber: o povo do Nordeste não tem uma cara. Isso é invento, com camadas e camadas de estereotipação, que tiveram como reforço de partida escritos jornalísticos da década de 1920, a exemplo das Impressões do Nordeste, publicadas pelo Estado de S. Paulo, logo após o recorte espacial ser batizado como tal. “O homem é geralmente pequeno e descarnado, com tendência à fixação de esqueleto defeituoso (…). A mulher, raramente atraente, envelhece precocemente, (…) não sendo rara (…) a decrepitude aos 40 anos”, é o que consta em um dos artigos.

O eco do pensamento eugenista que orientou políticas de branqueamento da população brasileira àquela altura pôde ser ouvido nessas primeiras impressões, com a decretação do mestiço como inimigo da evolução nacional. Mas se não é justamente a miscigenação inerente ao Brasil, que começou no Nordeste, registre-se, a responsável por sua gente ser tão diversa? Os muitos milhões de nordestinos apresentam diferentes características físicas que não se reconhecem em estereótipos. Muito menos em apenas um.

Múltiplos rostos, múltiplos sotaques. O modo de falar do povo do Nordeste também não admite graça nem homogeneização. Quem é de Recife não fala como o pessoal de Salvador, que não fala como a turma de Fortaleza, o que faz com que qualquer comentário sobre o “sotaque nordestino” seja inapropriado. Primeiro, por ele de fato não existir – são vários sotaques – depois, porque todo mundo fala com algum sotaque, inclusive você, e não há hierarquia entre as variações de como o português é entoado pelo Brasil.

O modo de falar do povo do Nordeste também não admite graça nem homogeneização

“Eu conheço o fulano, que também é do Nordeste. Sabe quem é?”. Eis aqui outra queridinha entre os preconceituosos de boa-fé, sem intenção de rimar. Não é porque uma pessoa é de Natal que ela conhece todos que moram no sul da Bahia ou um sergipano tem no WhatsApp os contatos de geral das ilhas do Maranhão. Esse questionamento puxa de novo o reducionismo para o diálogo, com a adição de um caráter exótico que não é bem-vindo e que acessa diretamente a pasta da cisão entre “nós”, quem não é do Nordeste, e “eles”, os nordestinos.

Vale um adendo aqui sobre essa dicotomia Norte-Sul que atravessa a história do Brasil, sobretudo no período em que o Nordeste passou a existir com esse nome. Havia uma disputa nada velada pelo poder, com o confronto bem aquecido entre as elites ascendentes do Sudeste e as nordestinas que estavam em declínio, que viram o seu prestígio político encolher junto da economia do açúcar. O urbano versus o rural, o moderno versus o arcaico, a prosperidade versus a seca. Reduzir o Nordeste era estratégia eficaz para encolhê-lo politicamente.

Outra leva de frases com panos e panos passados pela turma do “deixa disso” é a que contempla termos como “paraíbas” e “paus-de-arara”. Essas expressões nasceram justamente no contexto cruel de depreciação dos trabalhadores nordestinos, que persistiu nas décadas seguintes do século 20, e que se associa, em alguma medida, à depreciação da mão de obra preta. Aliás, que persiste até hoje. Reproduzi-las, portanto, diz mais sobre quem fala do que sobre os próprios nordestinos.

Afirmar que uma característica elogiosa de uma pessoa é inesperada em razão do seu lugar de origem é maldizer todos os seus conterrâneos

O uso perigoso de conjunções e locuções como “embora” e “apesar de” para expressar concessões completa o pacote básico de declarações que exigem um F5: “Apesar de você ser do Nordeste, você…”. Pare! Não tem como essa frase terminar bem. Afirmar que uma característica elogiosa de uma pessoa é inesperada em razão do seu lugar de origem é maldizer todos os seus conterrâneos. Como se pode achar que o insulto a familiares e amigos é capaz de dignificar alguém?

Esses elogios ofensivos ocorrem com frequência no ambiente de trabalho – a depreciação da mão de obra mais uma vez –, com comentários sobre inteligência e disposição para a labuta. Creia: exatamente o que as Impressões dos anos 1920 apresentavam ao país: uma gente “fatalista” e “indolente”, que “vive de farinha e rapadura” e “vegeta por contemplação”, “com o espírito sempre voltado para o seu pequenino mundo desolador”.

O pensamento decolonial que norteia a revisão da história e de (maus) costumes revela a cada dia como muito do que imaginamos ser não passa de construções interesseiras e, por isso mesmo, equivocadas. Conhecê-las liberta para necessárias atualizações, com as quais será possível, nesse caso, abrir finalmente a caixinha limitada onde o nordestino foi colocado na cabeça do brasileiro. É que esse povo do Nordeste é grande e plural demais para ser acomodado lá dentro.

Octávio Santiago é jornalista, escritor e pesquisador da origem do preconceito contra o povo do Nordeste