Papai Noel S/A
A procura por papais-noéis aumentou após quase dois anos de crise. Descubra os perrengues que o bom velhinho tem que enfrentar e o impacto da pandemia no setor
À primeira vista, o trabalho do Papai Noel pode parecer o mais fácil do mundo. Com uma fábrica mágica de brinquedos, uma quantidade considerável de duendes operários e uma frota de renas voadoras, o bom velhinho tem uma ótima estrutura de negócios. Some isso ao fato de que ele só trabalha uma vez por ano e até mesmo o mais encostado dos herdeiros pode começar a ficar com inveja. Longe da fantasia natalina, no entanto, a realidade dos Papais Noéis não é tão fácil quanto nos filmes.
Seja em shoppings, em empresas ou em condomínios, atores ao redor do mundo assumem o manto vermelho e, de oito a dez horas por dia, se transformam no Santa Claus. Além da carga horária pesada para senhores de idade e perguntas inconvenientes de crianças que não acreditam nele, o Brasil ainda oferece um desafio extra – o calor de dezembro.
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Para Helio Gerbas, 54, o trabalho nem sempre é fácil. O ator é Papai Noel há mais de 22 anos e é fundador da empresa “Papai Noel & Cia”, uma agência dedicada exclusivamente ao personagem do bom velhinho. “É um trabalho muito cansativo, muito pegado.” Em meio a todas essas dificuldades, a pandemia do coronavírus complica ainda mais o cenário. Em 2020, os encontros natalinos presenciais foram praticamente inexistentes. Durante esse tempo, a “Papai Noel & Cia” realizou cerca de 1,5 mil videochamadas.
Em média, costumávamos perder oito papais noéis por ano. Entre 2020 e 2021, perdemos 45 atores em nosso cadastro. É um número terrível
Já em 2021, a previsão era de uma lenta retomada. Papais Noéis de máscara e cercados por vidros acrílicos já se tornaram visões comuns nos shoppings do país, mas além do risco à saúde dos atores, há um grande problema no mundo Noel. De acordo com o empresário, sua empresa está recusando pedidos de alguns clientes por falta de Papais Noéis. “Nos últimos dois anos, ninguém fez festa. Este ano, todo mundo quer. Nunca tivemos tanta procura, mas não há Papai Noel o suficiente para atender a demanda.”
Muitos velhinhos de vermelho ainda têm receio de sair de casa e não voltaram à ativa por conta disso. Gerbas também aponta para um situação triste: “Em média, costumávamos perder oito papais noéis por ano. Entre 2020 e 2021, perdemos 45 atores em nosso cadastro. É um número terrível.” Nos Estados Unidos, a situação é semelhante. De acordo com a Hire Santa, companhia que agencia Papais Noéis, a demanda pelos serviços mais do que dobrou em 2021. Já a disponibilidade de atores caiu 10%. A revista americana Slate, o presidente da International Brotherhood of Real Bearded Santas contou que cerca de 25% dos Papais Noéis não estão aceitando trabalhar presencialmente.
Papai Noel & Cia/Divulgação
Em meio a uma crise sem precedentes na história, o mercado de Papais Noéis luta para continuar a existir. Gama conversou com três profissionais da área que contaram os segredos, os bastidores e os perrengues do mercado mais mágico do fim do ano.
O que faz um bom velhinho?
No cinema, é comum assistirmos planos mirabolantes de crianças que buscam pegar o bom velhinho no flagra. No mundo profissional a procura por Papai Noel é bem mais simples e acontece em todos os lugares, seja na rua, na internet ou por meio de anúncios. Gerbas conta que já chegou a parar alguns senhores no meio do shopping e abordá-los oferecendo uma oportunidade. “Pergunto se a pessoa tem trabalho fixo, se pode trabalhar, se tem carro, se bebe, se gosta de criança.” Um dos grandes diferenciais dos candidatos, segundo ele, é a barba natural. “Quando comecei no ramo, todos os papais noéis tinham barbas artificiais. Mas isso mudou, virou uma exigência do mercado. Desde então, deixo a barba crescer e faço o processo de descoloração.”
Para o empresário Helio Gerbas, algumas diretrizes são fundamentais na hora da contratação – o Papai Noel não pode fumar, não pode beber e, acima de tudo, tem que gostar de criança. “O que o ator precisa entender é que o Papai Noel é um personagem, não é uma extensão dele”, conta o empresário. Pessoas com qualquer tipo de preconceito e sem paciência costumam ser limadas logo no processo de escolha. “O Papai Noel não pode ter barreiras. Ele tem que saber lidar com todo tipo de pessoas, das mais diferentes realidades.”
Quando comecei no ramo, todos os papais noéis tinham barbas artificiais. Mas isso mudou, virou uma exigência do mercado
No começo de dezembro, um incidente em um shopping da zona sul de São Paulo se tornou notícia em todo o Brasil. Uma mãe acusou o Papai Noel que trabalhava no shopping de discriminação. Segundo ela, seus filhos pediram presentes de Natal caros e o Papai Noel rispidamente respondeu que aqueles presentes não condiziam com a realidade dos garotos. O shopping lamentou o ocorrido e substituiu o funcionário que atuava como Papai Noel.
Para Adilson José de Queiroz, 66, não existe no mundo do Papai Noel qualquer tipo de preconceito. Ele, que é formado em administração de empresas, se tornou Papai Noel no ano de 2017 após receber uma proposta online de uma agência de eventos. “Qualquer que seja a raça, o credo ou a classe social, as pessoas têm de ser tratadas da mesma forma. É importante agradar a todos.” O caso citado acima, de acordo com ele, é um exemplo de que nem todos estão preparados para ser Papai Noel. “É necessário estar imbuído do espírito natalino. Se você não deixar o bom velhinho tomar conta de você, nada acontece. Se você não gostar de Natal, não vai rolar”, afirma José de Queiroz.
A magia do Natal
Além da responsabilidade social que a figura de Santa Claus exige, há também um dever quase espiritual para quem assume o manto vermelho. “Muita gente vem falar comigo achando que eu sou um santo e que tenho um contato direto com o homem lá de cima”, diz Gerbas. Figura quase divina sob o olhar de muitos, os pedidos de adultos costumam ser grandiosos – engravidar, sucesso no trabalho, prosperidade, entre outros. Para José de Queiroz, atuar como Papai Noel já lhe gerou momentos de muita emoção. “Muitas vezes, adultos te pedem algum tipo de milagre. Eles veem no Papai Noel uma figura de esperança.”
“O Papai Noel tem que ser o melhor contador de histórias que você já viu. Você tem que aproveitar cada oportunidade e qualquer pergunta que uma criança faça para contar uma história. É a única forma de você encantar as pessoas”, relata Gerbas. Quem concorda com a frase é Jorge Occhiuzzo, 66, que também atua como Papai Noel. Occhiuzzo, que trabalha como ator, aceitou o papel do bom velhinho a pedido de um amigo que tinha uma agência de eventos.
Ali, percebeu que havia uma oportunidade de negócio e acabou criando a “Papai Noel Brasil”, companhia que chegou a contar com mais de 100 profissionais filiados. “Tem que ter carisma e qualidade. Você pode até não ser psicólogo, mas tem que saber conversar com as pessoas para sair de perguntas inconvenientes e saias justas.”
Segundo o ator, seu Papai Noel não é bobo, mas sim um personagem que diverte os adultos e as crianças. “É o bom velhinho que leva presente, conversa e dá conselhos, mas que também dá um puxão de orelha nos pais quando necessário.” Certa vez, em uma visita à uma casa, uma garota chutou a perna de Occhiuzzo e o xingou. Ele comentou com os pais o ocorrido e falou para a garota que ela seria a última a receber o presente. Dito e feito, além de ser a última, a menina ainda escutou que estava com a boca bem suja. “No final da festa, recebi uma boa gorjeta da avó. Ela me disse que os pais não educaram a garota direito e fez questão de me chamar para o Natal do próximo ano”, relembra Occhiuzzo com uma boa risada.
Shopping, ar-condicionado e pausa para o banheiro
Em 2021, Occhiuzzo fechou sua companhia “Papai Noel Brasil” por conta da pandemia. Atualmente, o ator atende seus clientes de forma autônoma e online. “Não fiz presencial ano passado e não farei este ano. Já vi muitos colegas falecerem devido à covid-19. Prefiro me manter online.” Quem também se afastou do atendimento presencial foi Adilson José de Queiroz. “Quando começou a pandemia, abdiquei do trono. Tenho problemas cardíacos então resolvi não me arriscar.”
Apesar da ameaça à saúde, o shopping ainda é o meio mais rentável para um Papai Noel. De acordo com Gerbas, a média de ganho para um ator é entre oito mil e 12 mil reais por cerca de 45 dias de trabalho. “A maioria aceita esse emprego pois ele é o mais lucrativo. Você não consegue ganhar esse valor todo fazendo festas e encontros individuais”, afirma o empresário.
Tem lugares em que o Papai Noel está apertado para ir ao banheiro, mas não deixam ele sair. Não há respeito com o profissional
“Na carreira do Papai Noel, o shopping é o auge”, diz José de Queiroz. Ele, no entanto, relata que não gosta de trabalhar nesse tipo de ambiente. “Um trono legal, um bom ambiente de trabalho, isso nem sempre acontece. No Natal, você deveria ser a figura número um de lá, mas quase nunca é assim.” De acordo com ele, muitos administradores de shopping esquecem que se tratam de senhores de idade.
“O bom velhinho é colocado, por exemplo, para se trocar no meio do restante do pessoal do shopping, todos em sua maioria jovens de vinte anos. Muitas vezes é desconfortável e constrangedor para os dois lados.” Além desse constrangimento, o calor de dezembro também costuma ser brutal. Apesar de quase todos os shoppings terem ar-condicionado, nem sempre é o suficiente devido à grossura da roupa. Ao pedir um ventilador, o equipamento costuma ser prontamente negado por “estragar a magia do cenário”.
Papai Noel & Cia/Divulgação
Antes da pandemia, Igor Occhiuzzo se recusava a atender shoppings. O calor – o ator diz que levava cerca de 10 trocas de camisetas devido ao suor – é um dos motivos, mas está longe de ser o pior. “Tem lugares em que o Papai Noel está apertado para ir ao banheiro, mas não deixam ele sair. Não há respeito com o profissional.” Mesmo com todos os perrengues, os representantes do manto vermelho estão animados para o futuro. “O Papai Noel é muito bem visto pelo mercado. Ele é o símbolo das compras de Natal, a razão de ser”, afirma José de Queiroz.
“Entra ano, sai ano, e o Natal continua muito forte.” “É um bom mercado, mas tem que saber trabalhar e fazer um bom trabalho”, complementa Occhiuzzo. Para Helio Gerbas, o fato da próxima Copa do Mundo ser realizada em novembro e dezembro de 2022 poderá ser um problema, mas ele tem esperanças de que o saldo será positivo. “Espero uma boa retomada. Que em 2022, não precisemos mais usar máscaras e que possamos ter beijos e abraços.”
A imagem tradicional do bom velinho na cultura popular é a de um homem, idoso, obeso e branco. Nos últimos anos, no entanto, uma série de questões sobre representatividade vem sendo levantadas no mundo natalino. A mais importante delas pode ser resumida com uma simples pergunta – pode o Papai Noel ser negro?
Nos Estados Unidos, o debate ganhou proporções nacionais em 2013 quando uma apresentadora de um programa conservador de TV afirmou que Santa Claus sempre foi branco. A fala gerou revolta em parte do público americano, mas houveram aqueles que defenderam a jornalista.
O tema continuou a ser debatido nos EUA, mas parece não encontrar tanta resistência quanto no começo da década. Em 2021, a Disney passou a incluir Papais Noéis negros nas celebrações natalinas em seus parques. À CNN, um porta-voz da companhia afirmou que a figura de Santa Claus é representada de várias maneiras em diversos lugares e que eles buscam refletir essa diversidade em seus parques.
Em 2019, a Globo exibiu um especial de Natal com o primeiro Papai Noel negro da TV brasileira. Em entrevista ao Gshow, o ator Milton Gonçalves afirmou: “Estar aqui fazendo este personagem é uma batalha de séculos, uma emoção muito grande. Quando era menino, eu não tinha essa referência.”
A discussão sobre a cor do Papai Noel busca trazer mais representatividade para uma figura tão querida no imaginário popular. Se mais da metade da população brasileira é negra, é tão absurdo pensar em um bom velhinho negro?
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