Leandro Sarmatz
Faça um favor a si mesmo: volte a dançar
Com a relativa tranquilidade proporcionada pela ampla cobertura vacinal em São Paulo, saí para dançar. Os momentos de hedonismo em movimento foram talvez os melhores desde março de 2020
Num texto sobre dança e escrita recolhido na antologia de ensaios “Dance in America”, Susan Sontag comenta por alto – sem nenhuma paciência para o detalhe – como a dança encontrou seu chão nos Estado Unidos, país multicultural. O mesmo pode ser dito sobre o Brasil. E isso em todos os gêneros e registros, do balé clássico ao passinho surgido nas comunidades cariocas. Gostamos de dançar. E não somente no carnaval. Nossos primeiros movimentos, quando conseguimos no erguer com as próprias pernas, compõem um bailado bastante semelhante àquele o qual, quando embriagados, mal conseguimos suportar o próprio peso em meio à vertigem etílica.
Lembro das primeiras festinhas, na aurora da adolescência, em que púnhamos para tocar uma canção mela-cueca qualquer e começávamos a dançar em par. Os primeiros bailinhos – que no Sul se chamavam “reunião dançante”; devo dizer que a língua portuguesa chegou relativamente tarde ali, então tudo é muito literal e duro para nomear as coisas – são um marco. Envolvem o despertar da sexualidade, claro, mas também nos põe a par do melhor da nossa vida cinética. Aprendemos a nos mexer, a agradar o outro nesse processo, e o círculo de autogratificação, vaidade e alegria se forma.
Ainda há neandertais, porém, que fazem pouco caso da dança. Lembro, a propósito disso, da “nêmese” sontaguiana, o romancista – e macho abusivo das letras par excellence – Norman Mailer. Homem que é homem não dança é o título de um dos seus livros, um romance noir. Mailer, educado na escola Hemingway de macheza (exceto pelo suicídio), decerto não aprovaria meus movimentos na pista de dança. Faria troça ou daria risinhos irônicos.
(Que seja. Continuo gostando dos seus ensaios — apesar de algumas derrapadas no julgamento de alguns de seus contemporâneos — e achando seus romances um porre, quase todos imbuídos daquela cafoníssima pretensão de fazer “o grande romance americano”. O que significa “o grande-romance-feito-por-machão-branco-americano”. Já foi, já passou, não resta mais nada disso.)
Na euforia, chego a dançar em casa. Não me olhe assim. Podia ser pior: eu poderia estar usando camisetas com frases engraçadinhas ou falando em ‘terceira via’
Mas voltando à dança: das atividades sociais que costumam demandar uma certa dose de álcool, a dança, para mim, é a única que consigo naturalmente realizar a seco. Ela me embriaga por si mesma. Sem querer soar o teletubbie de meia-idade, devo revelar que há períodos de euforia que chego a dançar em casa. Não me olhe assim. Não, não é tão patético quanto parece. Podia ser pior, como sempre: eu poderia estar aprendendo guitarra, usando camisetas com frases engraçadinhas ou falando em “terceira via”.
Na última semana, com a relativa tranquilidade proporcionada pela ampla cobertura vacinal em São Paulo, saí duas vezes para dançar. Na primeira ocasião, uma festa de aniversário, as duas caipirinhas antes da música me fizeram esquecer a máscara no bolso da calça, além de toda a ansiedade pandêmica. Me misturei bem na pista. Alegria pura e sem preocupações. Havia um grupo de samba animando a festa e os momentos de hedonismo em movimento foram talvez os melhores desde março de 2020.
Dançar no meio de tanta gente desconhecida me travou. Embora todos os cuidados tenham sido tomados, havia uma sensação algo transgressiva
No último sábado retornei ao Studio SP, pátio de milagres festeiros e musicais que fez história na última década e que agora reabre suas portas na Rua Augusta. Era uma festa capitaneada por KL Jay, dos Racionais. Ali, a experiência de dançar no meio de tanta gente desconhecida me travou um pouco. Embora todos os cuidados tenham sido tomados – o comprovante de vacinação era solicitado à entrada, a lotação foi controlada, as pessoas chegavam com máscara –, havia ainda, pelo menos para mim, uma sensação algo transgressiva. Dessa vez não consegui esquecer a morte, que tem nos rondado de forma obsessiva. De todo modo houve momentos em que era possível relaxar e dançar. Foi bonito.
*
Tenho uma tese. Dançar “bem” ou dançar “mal” não importa muito, no caso. Aliás, se você dançar muito mal mas com muita segurança e desembaraço (meu caso, surpreendentemente), você passa a ser reconhecido como um bom dançarino. Certa ocasião, depois de algumas festas bailantes durante uma feira literária no México, uma agente holandesa me apresentou a um agente canadense da seguinte forma: “Ele é ótimo dançarino”. Confesso que aquilo me doeu e mexeu com meus brios editoriais. Pensei que ela deveria ter me elogiado profissionalmente. Depois percebi: eu já estava ali como profissional, o elogio dela às minhas supostas qualidades de dançarino é que podia ser encarado um detalhe a mais a ser valorizado. Será autoengano? Não sei, mas prefiro pensar assim.
O caso é que depois das “reuniões dançantes” foram poucas as ocasiões de uma dança em par com alguém – aquela coisa de segurar na cintura e fazer movimentos para lá e para cá. Acho que nem consigo mais fazer isso. Mas tenho uma variedade relativamente ampla de movimentos para todos os outros ritmos, como samba, funk, charme, samba-rock, disco e congêneres. Podem não ser essas mil maravilhas. Mas produzem um tipo muito especial de felicidade.
Que bom que a dança está voltando.
Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.