Se é difícil sair da caverna, abra-a para os amigos — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Se é difícil sair da caverna, abra-a para os amigos

Uma lista de vinhos (e harmonizações) para receber bem em casa quando a conta do bar se torna impossível e o desconforto com o retorno ao mundo é maior que a vontade de sair

03 de Novembro de 2021

Que momento estranho. Podemos chamar de retomada? Muitos voltam a bares e restaurantes pela primeira vez agora em quase dois anos. Uma retomada da vida etílica social talvez. Para alguns, ela é lenta; para outros, mais rápida. Para mim, um momento de dúvida (é hora mesmo de sair?), ansiedade (e se não for?) e muita frustração (tanto esforço pra isso?).

Outro dia, conversando com uma amiga, cheguei à conclusão de que não estou preparada para o mundo pós-pandêmico em muitos níveis, mas o principal deles diz respeito às expectativas. Estamos com desejos represados há quase dois anos. Imaginamos os lugares que amávamos frequentar no passado e poucos deles ainda existem. Alguns fecharam de verdade; outros não são mais o que eram por um motivo ou por outro; e um terceiro grupo nunca chegou a ser o que guardamos na memória, porque, afinal, ela é seletiva e estranhamente romântica – deu um jeito de maquiar defeitos que sempre estiveram lá e que agora vamos ter o (des)prazer de reencontrar.

Há ainda outra grande questão: quem vai pagar a conta? Não é metáfora, é uma pergunta tão genuína quanto literal. Talvez uma, duas saídas, mas como bancar financeiramente as contas que bancávamos antes? Assim como nós mudamos com o trauma pandêmico, a economia também o fez e a inflação escalou o Everest. Você e eu estamos cansados de saber disso, afinal nos perturbamos a cada semana no supermercado, mas ainda assim é um tombo receber a dolorosa, que nunca doeu tanto. Ela dói especialmente quando o valor cobrado parece deslocado do que é servido.

Assim como nós mudamos com o trauma pandêmico, a economia também o fez e a inflação escalou o Everest

Saí duas vezes desde que recebi minha segunda dose de vacina contra a covid-19. Na primeira delas, a primeira ida a um bar em 20 meses, fingi que soava como Daisy, de o “Grande Gatsby”, aquela cuja voz era cheia de dinheiro, e pedi absolutamente tudo o que parecia interessante. Se eu gostava, pedia mais um. Estava celebrando, afinal: diferentemente de muitos brasileiros, conservei meu emprego e renda, estava viva e cheia de fome e sede. Ao receber a conta, a sensação foi a de deixar um rim. Mas ainda valeu a pena. Foi um exercício de ocupar um espaço público de novo (sentei na calçada); de encontrar amigos, especialmente aqueles nem tão próximos, justamente aqueles de quem sentimos tantas saudades, porque trazem o conforto dos estranhos e a normalidade de uma vida casual; e, também, de ser bem tratada. Escolhi comida e vinhos com a ajuda paciente de quem me atendeu. Essa comida foi preparada por um chef profissional e trazida à mesa sem que eu tivesse qualquer trabalho semelhante ao dos últimos 20 meses.

No outro dia, no entanto, acordei às 7h com ressaca. Nada de dor de cabeça, mas um sofrimento tanto financeiro quanto moral: como vou conseguir sustentar meus hábitos hedonistas e epicuriosos nesses tempos pós-pandêmicos (se é que podemos falar assim)? Chega a ser indecente se você põe na ponta do lápis e verifica que o que se gasta na mesa do bar é o mesmo valor de uma semana de mercado para uma família. É horrível e revoltante. Na minha segunda experiência de volta a um balcão foi ainda pior: gastei bastante e não fui feliz. O retrogosto desse tipo de experiência é ainda mais amargo. Depois de muita reflexão cheguei a uma conclusão:

O mundo realmente está diferente e o bar não sairia ileso dessa. O novo normal (ai que saco, alguém ainda aguenta isso?) talvez peça que se abra mais a casa. A retomada etílica social talvez tenha que englobar um exercício de anfitrionismo mais hardcore. Não que ele não seja dispendioso, mas é mais controlável, e pode-se contar com um mutirão gastronômico bem simpático. Pode ser bom, inclusive, para quem está sofrendo da síndrome da caverna, o medo de ir pra rua depois de tanto tempo.

O mundo realmente está diferente e o bar não sairia ileso dessa. O novo normal talvez peça que se abra mais a casa

Se essa ideia parece sensata para você, siga aqui comigo que vou tentar montar o que seria um bar à vin doméstico ideal para receber os amigos. Para começar, três opções: um Jerez Fino como o Viva La Pepa, que faz as vezes de um aperitivo, um vinho charmoso e menos usual, e profundamente amigável para combinar com qualquer belisquete ou mesmo com nada; um espumante brasileiro ou um pét-nat, que sempre geram assunto, são leves, frescos e muito saborosos; ou um rosé bem vibrante e nada provençal, daqueles bem escuros e alegres, como os espanhóis Rochapel Rosado ou Sonrojo.

Se o evento for uma festinha de amigos, não inventaria muito e ficaria por aí, com os citados acima. Ouso sair do meu cercadinho e sugerir como alternativa a degustação das cervejas sour com frutas (manga ou frutas vermelhas) da Trilha, ou mesmo das envelhecidas em barris de carvalho, para seguir na mesma toada dos vinhos. Se você for do drinque, outras ideias são coquetéis facílimos como o Campari Tônica, se seu negócio for amargo, ou Porto Tônica, com vinho do Porto branco seco, como o da Casa Ferreira, se seu negócio for doçura. Para qualquer um dos dois, uma rodela de laranja.

Se a ocasião é um almoço ou jantar, vale harmonizar de acordo com a comida, há um mundo de possibilidades. Umas dicas rápidas: Tábua de queijos? Moqueca? Quiche lorraine? Um branco fresco mas com estrutura como o Chardonnay Terroir da Valduga. Ostras? Sushi? Um branco mineral como este seco do mestre Dr. Loosen. Churrasco? O argentino This Is Not Another Lovely Malbec é uma delícia, e você ainda paga de moderninho porque ele é diferente de todos os outros. Pizza? Lasanha? Bolognesa? Um Sangiovese ou Dolcetto D’Alba garantem um casamento celestial. Feijoada? Abafe ao abrir um espumante! Eu iria de brasileiro também, tipo um Cave Geisse, que faz um dos melhores do Brasil — amo o Nature, e o Victoria tem um ótimo custo-benefício. Tá na dúvida sobre o prato e quer impressionar? Escolha um laranja tipo o natural Trebbiano On the Rock, que é super harmonizável e moderninho, com o azedinho característico dos laranjas.

Há ainda os vinhos chamados “democráticos” (nossa, como precisamos disso hoje em dia, não? Algo com que todos possamos concordar?), aqueles que são fáceis de beber, versáteis, deixam o dono da taça superfeliz. De cara, penso no Tempranillo da Real Compañia de Viños, que tem preço ótimo e agrada gregos, troianos, esquerda, direita, corintianos e palmeirenses.

Com isso tudo, não sugiro que as idas a bares e restaurantes sejam suspensas terminantemente. É claro que é sempre uma experiência singular, com comida com um gosto diferente da sua e harmonizada por alguém que pesquisou e se dedicou a isso. Mas, se estiver difícil para você pagar a conta ou sair da caverna, experimente abri-la para os amigos. Neste momento, antes bem acompanhado e reaprendendo a socializar do que angustiado e sozinho.

Saca essa rolha

PARA GASTAR POUCO E SER FELIZ COM OS AMIGOS
O branco Dão Titular Branco é meu achadinho do ano, com untuosidade, acidez e mineralidade ao mesmo tempo. Os vinhos da linha Paradoxo, da Salton, são muito bons também e baratos, em torno de R$ 59.Gosto especialmente do Chardonnay e do Pinot Noir.

PARA GASTAR POUCO E PARECER QUE GASTOU MUITO
Recomendo com louvor o Terroir Gewurztraminerda Valduga, que tem excelente tipicidade e brilha com os sabores das culinárias da Ásia. Entre os tintos, o A. de Coligny CoteauxBourguignons faz uma festa inteira, um tinto de corpo leve, muita acidez e fruta fresca — uma cereja deliciosa.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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