Fernando Luna
O que mais gosto de fazer é nada
Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre a cilada do ócio criativo, a amnésia como técnica de sobrevivência, os brasileiros refugiados no próprio Brasil e as agruras do beach office
O que mais gosto de fazer é nada
Bénédicte Houart, 2009
Não me venha com ócio criativo – especialmente durante um feriadão.
Aquele tiozinho barbudo italiano que transformou o dolce far niente em atividade produtiva deve ter se arrependido. Nunca mais teve um minuto de descanso. Condenou a si mesmo a explicar infinitamente suas ideias em entrevistas, palestras e, nos últimos tempos, videoconferências.
Bem feito.
É nisso que dá derrubar o último bastião da vagabundagem, convertendo as horas de folga em momentos eureka, obrigando o tempo livre a ser inventivo, fazendo da vadiagem um maldisfarçado workshop de criação.
(Já o bolsonarismo desenvolveu o ódio criativo: a inesperada capacidade de sentir raiva de uma época em que todos os indicadores do país eram melhores. A gente era feliz, e daí? Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor. Ai, desculpa Nelson Cavaquinho. Você merecia ser citado num contexto melhor.)
O bolsonarismo desenvolveu o ódio criativo: a inesperada capacidade de sentir raiva de uma época em que todos os indicadores do país eram melhores
Abaixo o ócio criativo, viva o ócio-ócio – sem obrigação de um insight.
Praticar nadismo exige prática, habilidade e até mesmo alguma sabedoria zen: o vazio absoluto é como aquele koan que pergunta qual o som de apenas uma mão batendo palma.
Infelizmente, me distraio fácil demais e nunca consigo manter o foco pra alcançar a transcendência entre o ser e o nada.
Quando me dou conta, suspendo a suspensão pra, sei lá, clicar em notícias aleatórias. Mulher-Gato é amante de traficante: clique. Uma pessoa que não conheço tatua o nome de outra pessoa que não conheço: clique. Um californiano faz todas as refeições num parque de diversões há sete anos: clique.
É impossível fazer nada.
A própria expressão “fazer nada” guarda uma impossibilidade. Se você faz alguma coisa, mesmo que essa coisa seja nada, automaticamente deixa de fazer nada pra fazer alguma coisa. Sísifo não descansa mesmo.
Queria ser como a portuguesa Bénédicte Houart – não se engane pelo nome, ela nasceu na Bélgica mas vive desde a infância na terrinha. A poeta descreveu minhas aspirações em seu livro “Aluimentos”: “O que mais gosto de fazer é nada e faço-o como ninguém”.
Eu chego lá.
A memória é uma ilha de edição
Waly Salomão, 1995
Se não me falha a memória, a memória sempre falha.
Ainda bem.
Não fosse assim, a existência seria um incontornável transtorno de estresse pós-traumático. No poema “Carta Aberta a John Ashbery”, Waly Salomão escreve sobre nossa capacidade de “transmudar todo veneno e ferrugem em pedaço do paraíso”.
Agora, por exemplo, bateu aqui uma saudade da quarentena.
Não da tragédia sanitária em si, claro, posso até ter amnésia seletiva, mas doido não sou. Falo de seus efeitos colaterais mais modorrentos, tatuados devagar no meu córtex durante aqueles dias nem começo nem fim.
Lembro daquela sensação do mundo lá fora girando mais devagar. Com a vida desacelerada na marra, os acontecimentos afinal se sucediam num ritmo que era possível acompanhar. Os pensamentos se espichavam sem pressa.
Lembro daquela sensação do mundo lá fora girando mais devagar. Com a vida desacelerada na marra, os acontecimentos afinal se sucediam num ritmo que era possível acompanhar
As coisas subitamente deixaram de se atropelar na correria da cama pra academia, da academia pro trabalho, do trabalho pra reunião de trabalho no outro lado da cidade, da reunião de trabalho no outro lado da cidade pro almoço de trabalho, dali de volta pro trabalho, trabalho, trabalho, depois um evento, um jantar, um show, uma festa, uma cama e da cama pra academia, lá vamos nós de novo e de novo e de novo.
E o trânsito? Parecia um daqueles deuses abandonados, sem ninguém pra acender ao menos uma vela de ignição em seu altar. As ruas vazias de carros e ônibus num silêncio permanente, que antes só se escutava nas manhãs de domingo. Sem vaivém pra organizar, semáforos acendiam e apagavam por força do hábito.
No meio dessa estranha calmaria havia ansiedade, medo e videconferências em looping, mas é como se esses arquivos tenham sido danificados. Lembro com muito mais clareza do prazer de boiar no marasmo.
Talvez seja um truque mental pra me defender da volta do frenesi – revisto e ampliado, bastante ampliado.
O desvario de dezembro, quando decidimos resolver de uma vez todas as pendências acumuladas nos outros onze meses do ano e quem sabe até em vidas passadas, dessa vez se antecipou e chegou já em outubro.
Não é mais tudo pra ontem, é tudo pro ano passado.
Tem gente com fome/ tem gente com fome/ tem gente com fome
Solano Trindade, 1944
E fora dos Stories? Tem gente com fome.
Basta uma volta em qualquer grande cidade do país, pelo centro ou pela periferia, tanto faz, miséria é miséria em qualquer canto, pra ver o aumento da quantidade de gente desamparada.
Algumas ruas e praças, apinhadas de barracas de acampar improvisadas como arremedos de casa, parecem campos de refugiados. E, de certo modo, são exatamente isso.
Campos de brasileiros refugiados do próprio Brasil.
Expulsos desse país desgovernado e incapaz de garantir um prato de comida, os refugiados brasileiros não têm pra onde fugir e ficam por aqui mesmo. Já são 85 milhões em insegurança alimentar, 12 milhões passando fome.
Enquanto Jair Bolsonaro chora no banheiro num arroubo involuntário de autocrítica, tem gente com fome. Enquanto Ali Babananinha brinca de 40 ladrões em Dubai, tem gente com fome. Enquanto Jair Renan curte a mansão de 3 milhões de reais, tem gente com fome. Enquanto Carluxo treme com o cerco ao Gabinete do Ódio, tem gente com fome. Enquanto 01 demite uma grávida da sua fantástica loja de chocolate, tem gente com fome.
Enquanto Arthur Lira faz a egípcia pros mais de 130 pedidos de impeachment, tem gente com fome
Enquanto Arthur Lira faz a egípcia pros mais de 130 pedidos de impeachment, tem gente com fome. Enquanto o Centrão gasta o orçamento paralelo com tratores e outros mimos superfaturados, tem gente com fome. Enquanto Fabrício Queiroz troca as rachadinhas por uns bons drinks nas redes sociais, tem gente com fome. Enquanto a terceira via minimiza a ameaça à democracia e briga as brigas erradas, tem gente com fome.
Quando o poeta negro Solano Trindade publicou seu primeiro livro, “Poemas de uma Vida Simples”, tinha gente com fome. A história se repete, como tragédia e farsa ao mesmo tempo.
Agora, seus versos inspiram a Campanha Nacional de Arrecadação de Fundos Para Ações Emergenciais de Enfrentamento à Fome – organizada pela @coalizaonegrapordireitos, em parceria com a Anistia Internacional e a Oxfam Brasil, entre outras instituições.
Não precisa nem sair da internet pra doar, pra essa ou outras tantas iniciativas sérias. Só não esquece que tem gente com fome.
Trabalhar cansa
Cesare Pavese, 1934
Passei uns dias na praia, fazendo infinitas videoconferências com vista pro mar.
Não tô reclamando, não.
Sei do privilégio do trabalho remoto, mesmo com os defeitos colaterais de dar expediente em 2D. Se for inevitável trabalhar, melhor que seja em qualquer lugar – e se o lugar for no meio da natureza, melhor ainda.
Pois lá ia eu, agridoce balanço a caminho do mar, quando dei com a cena.
Na varanda da casa vizinha, um homem vestia a curiosa combinação de short colorido com camisa social azul. Um centauro esquizofrênico, meio banhista, meio executivo. Equilibrava o computador no colo, de modo que se adivinhava no fundo do seu vídeo apenas uma respeitável parede branca.
Ele fingia que tava no escritório.
Alguém precisa inventar um fundo virtual de mina de carvão, contra a hipocrisia das empresas cheias de mesas de pingue-pongue e de jornadas de trabalho típicas da revolução industrial
Ô mundo desgraçado esse em que não basta trabalhar, é preciso trabalhar com algum sofrimento. Deve dar justa causa alguém descobrir que você é capaz de trabalhar e também se divertir nas horas vagas.
Disfarça. Não, não é barulho do vento, é o ventilador de teto. Não, não é a passarada cantando, é a música do caminhão do gás. Não, não é a luz do sol no meu rosto, é o novo ring light.
(Alguém precisa inventar um fundo virtual de mina de carvão, contra a hipocrisia das empresas cheias de mesas de pingue-pongue e de jornadas de trabalho típicas da primeira revolução industrial.)
Aí vem o coach dizer pra sair da zona de conforto. Pra sair é preciso entrar primeiro. A história da humanidade é a história da busca pela tal zona de conforto – que só existe na imaginação dos gerentes de RH.
Em países menos desgovernados que o Brasil, já se esboça uma reação.
Depois das empresas demitirem funcionários, os funcionários estão demitindo empresas: “A Grande Renúncia” é o fenômeno dos recentes pedidos de demissão em massa nos Estados Unidos. Por aqui, o desemprego recorde atravanca a busca por relações trabalhistas mais saudáveis.
“Trabalhar cansa” é o nome do poema que batiza o primeiro livro do italiano Cesare Pavese. Tá na terceira parte da obra, chamada “Cidade no Campo”. Eita, logo no campo? Não conta pra ninguém que viajou.
Toda segunda, o jornalista Fernando Luna (@fluna) apresenta sua “Antologia Profética”, com versos desgraçadamente atuais.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.