Leandro Sarmatz -- A soma do que nós somos — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

A soma do que nós somos

O melhor que temos, como indivíduos e sociedade, é o livre-trânsito de origens, de visões de mundo, de cor da pele, de orientação sexual. Gente monolítica é monótona

30 de Agosto de 2021

Em maio, depois de um par de dias padecendo de uma dor persistente no corpo, resolvi fazer o teste de farmácia para covid-19. O resultado chegou poucas horas depois: aparentemente, eu não tinha sido contaminado. Vai ver era um resfriado ou uma das muitas reações psicossomáticas – e eu tive tantas! – à permanente exposição midiática das alas de contágio nos hospitais, das cenas de pessoas puxando o ar lá do fundo, da tristeza que se converteu esse país sob uma política oficial negacionista.

Poucos meses depois, uma oferta na minha caixa de e-mails: o mesmo laboratório do teste de covid me oferecia o seu teste de DNA (chamado muito a propósito “Origens”) por um preço bem mais baixo que o normal. Parecia tentador. Diversos amigos fizeram esse teste antes de mim, e todos comentavam como era a um só tempo glorioso e surpreendente descobrir pedaços de grupos étnicos e culturais que eles sequer desconfiavam carregar em sua cadeia genética. Gente que jurava que era 100% italiana mas cuja história formava uma pizza de Espanha, França, África, Norte da Europa e, claro, Itália. Ou que era português desde que se lembrava do tataravô, mas acabou se deparando também com Escócia, Escandinávia e judeu sefaradim.

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“Pedaços” e “pizza”, aqui, não estão apenas para ilustrar o texto. Quem faz esse teste “Origens” recebe no seu computador um caprichado material sobre as diversas culturas que formam sua herança (cultura, história), além de uns gráficos com o percentual de cada povo encontrado em seu DNA e os mapas de cada lugar. É uma experiência rica e variada, assim como a própria origem de muita gente: você percebe que nacionalismo, xenofobia, preconceito e orgulho tribal são apenas deformações tacanhas da História. O que vale é a mistura, o caldo cultural em que praticamente todos fomos originados. É uma lição sobre a humanidade.

Claro que fiz o teste. Recebi o kit, raspei o interior da bochecha com o cotonete especial que vem junto, envelopei tudo e despachei para o laboratório.

*

Foram seis semanas de espera e diversos picos de ansiedade. Uma janela aberta para a especulação pessoal, a história alternativa dos antepassados e um bocado (alô, terapia!) de projeção. Ao longo desse tempo, comecei a compor várias histórias paralelas. Meu avô materno era bem moreno – norte da África? A minha falta de conexão com alguns elementos da vida comunitária judaica poderia indicar alguma coisa mais funda? Como já disse em outro texto aqui, os dois lados da família vieram do leste europeu em 1929. E meu avó paterno, comunista na Lituânia, era falsificador de passaportes. E se eu não carregar em mim a história que me foi relatada? E se houver outra história, mais verdadeira, que teve de ser escamoteada ou mesmo falsificada? Somos em grande parte a narrativa que nos contaram.

E se eu não carregar em mim a história que me foi relatada? E se houver outra mais verdadeira, que teve de ser escamoteada? Somos em grande parte a narrativa que nos contaram

Passei a alimentar essas e outras ilusões. Havia em mim, preciso confessar, dois temperamentos no fundo de cada meditação sobre essas origens. Ambos forjados por aquilo que poderia ser qualificado de “ansiedade de pertencimento”. Chamo assim a ilusão – construída nos becos menos iluminados da personalidade – de buscar alguma satisfação em ser (ou não ser) deste ou daquele determinado grupo. No meu caso, oscilava entre a certeza com a história dos meus antepassados e uma espécie de anelo com uma provável descoberta: talvez eu não fosse tanto daquele jeito que me contaram. Haveria espaço, a esta altura da vida, para a construção de uma nova narrativa?

*

Alguém uma vez disse que uma grande cidade somente pode ser qualificada como tal se tiver vastas populações de negros, árabes, gays e judeus. Ou seja, em termos estritamente ocidentais e brancos: aqueles que habitam limbos do pertencimento. Ou que são marginalizados. Que foram convertidos em outsiders. Que são dali, mas que a qualquer momento alguém, dedo em riste, vai bradar sua alteridade.

O melhor que temos, como indivíduos e sociedade, é mesmo a soma de várias histórias. O livre-trânsito de origens, de visões de mundo, de cor da pele, de orientação sexual. Gente monolítica é monótona. E pior que isso: é frequentemente arredia à mescla.

O fato é que até agora estou pensando nas consequências do resultado do meu teste. Desde que o recebi, no início da semana passada, tenho refletido muito acerca dessas questões. Porque o meu foi e não foi surpreendente. Confirmou em 100% (sim: sem fatias na pizza nem vários mapas) a história que me foi contada desde o nascimento. Mas reafirmou dentro de mim outros 100%: a de que somos também o que construímos para nós mesmos. Se carrego em mim tão somente a origem detectada no teste, carrego comigo outras cargas amealhadas ao longo da vida: graças aos amores, sintonias e afetos forjados em cada década por mim vivida. É tudo isso, afinal, que me ajuda a contar a minha origem.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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