Fernando Luna
2021: uma motociata no espaço
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre o novíssimo programa espacial brasileiro, um app de pegação engajada, um Pix pra afagar o Centrão e o dilema “Coca ou Pepsi” no posto de vacinação
“O povo deseja duas coisas: pão e circo”
Juvenal, século 2
Essa mania do cidadão querer tudo é que atravanca o progresso.
Escolhe uma coisa ou outra. Como o pão tá caro demais, melhor partir de uma vez pro plano B do poeta romano Juvenal, esboçado no Livro X de suas “Sátiras”: esquece o “panem”, foca no “circenses”.
– A Copa América falhou. Precisamos de algo pra distrair o povaréu, talkei?
– Quem diria. Deu errado trazer pro epicentro da pandemia um campeonato de futebol que ninguém queria sediar por causa da pandemia.
– Prefiro comemorar os campeonatos que não trouxemos pra cá. A Eurocopa foi aqui? Então.
– Viagem espacial voltou à moda. Vamos falar com o Marcos Pontes.
– Cadê ele?
– Tava na sua live semana passada.
– Sério? Semana passada eu não tava bem mesmo… Fez merchan daquele travesseiro duro da Nasa?
– Não. Ele é ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações. O único brasileiro que esteve no espaço, acima de tudo e acima de todos.
– E ainda tem gente que duvida da capacidade das minhas Forças Armadas.
– O foguete era russo, Soyuz. E o voo aconteceu no governo do PT, uma carona que custou dez milhões de dólares.
– Comunistas corruptos. Quantas vacinas daria pra comprar com isso?
– Direto com o fabricante ou na mão do Dominguetti?
– Esquece. Não tem outra pessoa pra ajudar a gente nisso?
– Tem um bilionário que virou astronauta nesse final de semana. Agora que até a CVC vende pacote pras Maldivas, decidiu procurar um destino de férias mais exclusivo.
– Aí sim. Liga pro Luciano Hang.
– Quem?
– O Véio da Havan.
– Presidente, eu tava falando de outro bilionário. Richard Branson.
– Ele foi na motociata?
– Não. Ele é inglês.
– Chama o Carlos Wizard pra servir de intérprete e pedir dicas.
– Aproveita e fala logo com o Jeff Bezos e o Elon Musk.
– Globalista! Prefiro o Junior Durski e o Flávio Rocha.
– Mas quem vai fazer o foguete?
– Que foguete? Basta acelerar até o fim da Terra plana e cair no espaço, com transmissão pela TV Brasil e narração do Sikêra Jr. A CPI vai dar traço de audiência depois dessa.
“Você me abre seus braços e a gente faz um país”
Antonio Cicero, 1984
Quer tirar o atraso – o seu e o do país?
Seus problemas acabaram: chegou o ManifesTinder, o app de relacionamento que une o útil ao agradável.
Com ele você não apenas engrossa as manifestações pela democracia, contra a corrupção e a favor da vacina, como tem a oportunidade de dar aquele adianto na sua combalida vida sentimental – uma vítima da pandemia que as estatísticas não mostram.
ManifesTinder é o upgrade que você procurava.
Esqueça o Tinder. Chega de gastar horas deslizando o dedo pra lá e pra cá, engatar um papinho por dois ou três dias, marcar o date, reservar uma mesa pra dois perto da janela e, na sobremesa, descobrir que seu match votou nulo no segundo turno de 2018.
Com o ManifesTinder não tem erro: você só conhece pessoas do lado certo da história.
Até mesmo o uso off label do Instagram, comumente chamado de InstaTinder, ficou pra trás.
Por que mandar DM se você pode falar diretamente com a pessoa marchando ao seu lado – mesmo sem escutar nada que ela diz por trás da N95 e do Face Shield?
Outra vantagem do ManifesTinder é que já vem com um encontro presencial de bônus. Isso mesmo. E mais: esse encontro acontece obrigatoriamente num espaço aberto, provavelmente uma avenida ou praça, arejado por ideias democráticas e com baixo risco de contaminação.
Pega a visão do Antonio Cicero: braços abertos por um país melhor. Esse foi um de seus poemas musicados pela irmã, Marina Lima – que, aliás, deu o título “Fullgás” à canção, misturando o português do texto original (fugaz, breve) com uma expressão inglesa (full gas, força total).
Mas cuidado com as falsificações.
Alguns indivíduos mal-intencionados desenvolvem malwares capazes de confundir os desavisados. As Jornadas de Junho são o exemplo mais conhecido – aquilo não era amor, era cilada. Na dúvida, mantenha uma distância segura de qualquer aglomeração de motocicletas.
Com o legítimo ManifesTinder, seu único risco é acabar em braços PSDBistas.
Encare isso como um sacrifício pela construção de uma frente ampla contra o fascismo.
“Tudo se parte, o centro não sustenta”
William Butler Yeats, 1919
O Centrão também não tá firme.
O apoio do bloco mais fisiológico do Congresso Nacional, assentado às custas do orçamento paralelo de 3 bilhões de reais pra emendas de deputados governistas, dá sinais de ruína.
Mas já? Claro. Tudo passa, menos o Centrão.
Governo vai, governo vem, Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma, Temer ou Bolsonaro, e o Centrão sempre ali: dentes cravados na jugular do país, empapuçado de verbas em troca da tal governabilidade.
Só que existe uma coisa mais importante do que governabilidade: o próprio Centrão.
Essa turma é perita em se desvencilhar de abraço de afogado. Assim que um governo, qualquer governo, começa a fazer água, é abandonado sem hesitação. Não tem Pix que dê jeito. E a água avança rapidamente sobre o Palácio do Planalto.
Os índices de popularidade do presidente despencam. Ele acusa o golpe com pitis diários.
O coronavírus faz do Brasil sua praça de alimentação, com 513 mil mortos e contando. O meio ambiente é queimado junto com o filme do Brasil no exterior. A economia real atropela quem sobrevive à pandemia, apesar da Faria Lima brincar de jogo do contente com os indicadores menos piores do que se esperava.
O que falta pra que tudo se parta, como em “A Segunda Vinda”, do irlandês W.B. Yeats?
(Curiosamente, o poema foi escrito na ressaca da Gripe Espanhola. Desde então, inspirou muita gente, de Joan Didion com sua obra-prima “Rastejando até Belém”, à canção do Sleater-Kinney, “The Center Won’t Hold”– passando por virtualmente todos os comentaristas de política.)
Talvez não falte mais nada.
Os bolsonaristas que restaram têm apenas motivação psiquiátrica ou pecuniária.
Os fortíssimos indícios de corrupção e prevaricação na compra da Covaxin, revelados pelos irmãos Miranda, o servidor do Ministério da Saúde e o deputado federal, podem tirar da inércia o impeachment.
As ruas voltam a se agitar contra o desgoverno. As manifestações antecipadas pro próximo sábado prometem fazer um barulho capaz de atravessar os ouvidos moucos do Centrão.
A besta rude finalmente começa a se arrastar pra longe daqui.
“Uma meta: chegar atrasado à morte”
Adolfo Montejo Navas, 2002
Na entrada do posto de vacinação, o aviso: “Hoje somente Coronavac”.
É a versão pandêmica daquele garçom que pergunta ao freguês, como quem já se desculpa por antecipação: “Pode ser Pepsi?”.
Sério?!
Pode ser guaraná Jesus, Inca Kola, Mineirinho, Grapette sabor Uva Verde ou Crush Cajuína; pode ser Coronavac, AstraZeneca, Pfizer, Janssen, Sputnik ou Covaxin; pode ser qualquer coisa com capacidade cientificamente comprovada de manter uma distância segura entre sua singularíssima pessoa e um leito de hospital.
SUS não é bar de imunizantes, com serviço à la carte.
Lembra quando você era criança, fazia careta diante do prato de comida e sua mãe dava a real: “É o que tem, vai comer e vai gostar”? Então. Vai vacinar e vai gostar. Eu vacinei e gostei.
Foram uns 20 minutinhos na fila, até uma funcionária preencher minha ficha enquanto contava que gastou quatro canetas só na semana, de tanta gente passando por ali. E olha que só chegamos a 15% da população imunizada.
Logo me apresentou o vidrinho da vacina, como se fosse algum famoso da tevê ou do cinema. Ato contínuo, pôs em ação o protocolo antifraude: seringa exibida com a quantidade exata do líquido transparente, injeção no braço direito e seringa exibida novamente, agora vazia.
Pra encerrar, picada coberta por um dramático curativo da marca “Blood Stop”. Fiquei ligeiramente preocupado, confesso, quando vi aquilo em cima da mesa. Felizmente “Blood Stop” é apenas mais um exagero de marketing.
Estranho foi ser vacinado justamente no dia em que o Brasil chegou a 500 mil mortos. Talvez tenha sido até na mesma hora, ali pelo meio da tarde de sábado, em que o país contava meio milhão de cidadãos a menos.
(O que são um Fiat Elba ou uma pedalada fiscal diante do genocídio? Se impeachment não serve pra dar um basta nisso, serve mesmo pra quê?)
Bem, a primeira dose já foi. Aguardo a segunda, ansioso e mascarado. Espero bater a meta do poema-aforismo de Adolfo Montejo Navas, publicado em seu livro “Pedras Pensadas”. E, depois de bater a meta, quero dobrar a meta.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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