Notícias de um massacre particular
Um mês após a maior chacina executada por agentes públicos de segurança da história do Rio de Janeiro, o Instituto Defesa da População Negra relembra o massacre em texto exclusivo para a Gama
Se a história se repete na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa, a experiência das favelas do Rio de Janeiro mescla, reiteradas vezes, os dois estágios. Por volta de 06:10 da manhã do dia 06 de maio de 2021, aproximadamente 50 mil pessoas residentes na comunidade do Jacarezinho, que já foi tida como a favela mais negra da cidade – como relata Rumba Gabriel, liderança local há 65 anos –, acordaram ao som de helicópteros, “caveirões” e “chuva” de tiros.
O que teria começado como uma operação de inteligência articulada ao longo de dez meses, desdobrou-se em um banho de sangue que culminou na maior chacina executada por agentes públicos de segurança da história do Rio de Janeiro. Até o presente momento, contam-se 29 pessoas mortas em razão das ações daquela manhã. Resta saber se, aos olhos do cuidadoso planejamento, esses são números de insucesso ou de missão cumprida.
Até o momento, contam-se 29 pessoas mortas. Resta saber se, aos olhos do cuidadoso planejamento, esses são números de insucesso ou de missão cumprida
O massacre, ressaltamos, acontece sob a vigência da decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, que, nos autos da ADPF 635, determinou que as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro só poderiam acontecer durante a pandemia de covid-19 em caso de excepcionalidade. Quando o clima arrefeceu, por volta das 13 horas, nós, do Instituto de Defesa da População Negra, acompanhados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, pela Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e as articulações do território NICA, JacaLab e Associação de Moradores, entramos institucionalmente no Jacarezinho.
Pedimos licença aos diretores Kátia Lund e João Moreira Salles para aludir ao título do documentário “Notícias de uma Guerra Particular”, de 1993, pois não há outra forma de definirmos com precisão o que o bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, a qual alguns de nós chamamos de casa, vivenciou. Portas de lojas cravejadas com 30, 40, 50 buracos de bala; placas de trânsito que mais se assemelhavam a placas de tiro ao alvo; pedaços de reboco; estilhaços de vidro; cápsulas e mais cápsulas deflagradas de todos os tipos, inclusive as de calibre 12, apinhavam o chão. Os rastros de sangue marcavam caminhos intermináveis, e até uma granada foi encontrada no telhado de uma residência.
Na favela do Jacarezinho, há um beco que foi renomeado como Síria – uma referência direta ao país da Ásia que, há quase uma década, convive com uma guerra civil que ceifou meio milhão de vidas. Demonstrando que a nossa “guerra particular” tem mais regularidade do que a grande mídia costuma noticiar, dessa vez não foi na Síria que boa parte dos registros de mortes dentro de domicílios se desenvolveram. Foi na Travessa São Manoel, batizada em homenagem ao santo diplomata, que vimos uma senhora de aproximadamente 65 anos sair de sua residência antes que mais um óbito fosse computado. Bem na sua sala, entre espelhos e plantas, um buraco de bala ornava de forma indesejada o ambiente.
Descendo a Travessa, em beco apertado, alcançamos mais duas residências onde o mesmo relato nos foi apresentado. Lares humildes viraram cenário de crime. Em um cubículo onde se amontoavam objetos diversos, o sangue tingia o chão. O relato foi de que, deste local, saíram dois mortos. De um banheiro ao lado, mais dois corpos foram retirados. Parece detalhe, mas não é: não havia rastro de sangue ou coisa do tipo pela laje. Tudo se concentrava nos cômodos mencionados.
No Jacarezinho, há um beco que foi renomeado como Síria, uma referência ao país que convive com uma guerra civil que ceifou meio milhão de vidas
O pior dos relatos ainda estava por vir. Foi no quarto da menina Maria*, de nove anos de idade, onde aconteceu a cena mais brutalmente marcante que presenciamos. Era um quarto de paredes rosas e chão vermelho. Não um vermelho dos azulejos cuidadosamente escolhidos pela família, pois estes eram brancos. Era um vermelho invasor, que ali chegou após mais uma morte computada. Era o vermelho de um rapaz que morreu no mesmo ambiente em que Maria brincava, fazia seus trabalhos escolares e começava a planejar seus sonhos. Vermelho que tomou seus lençóis, sua mochila da escola e seus livros escolares de capa azul, distribuídos pelo município do Rio de Janeiro.
Depois de visitar o território, o passo seguinte foi contar os mortos – o penúltimo ato de um conflito sangrento. Ao final da manhã, eram 22; ao final do dia, eram 25; no final da semana, já ao longo do sábado, chegamos à marca de 29 pessoas oficialmente dadas como mortas em decorrência da Chacina do Jacarezinho. Um policial e 28 moradores do local. Destes, apenas três tinham mandado de prisão expedido a ser cumprido na incursão.
Em caso de guerra, o último passo seria a declaração de trégua entre os envolvidos. Desde 1998, segundo o jornal O Globo, a Polícia do Rio de Janeiro matou, em média, uma pessoa a cada dez horas. Para além de não haver vislumbre de quando e se esse dia de paz chegará, há o que as Mães de Maio dizem muito bem: “Guerra é quando os dois lados se opõem”. Tem outro nome para o que testemunhamos, como parte de uma política de segurança genocida em que majoritariamente um dos lados, negro e periférico, morre? Isto não é guerra. É um massacre.
*nome alterado
Instituto Defesa da População Negra , IDPN, é uma ONG situada no RJ que atua na defesa da população negra e em prol da equidade racial nas carreiras jurídicas e acesso à Justiça .