Fernando Luna
Como É Grande o Meu Amor por Você
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a força estranha de Roberto Carlos, a pandemia de embriaguez, o gabinete do doutor Contardo Calligaris e a casa em tempos de fique-em-casa-se-puder
“Mas com palavras não sei dizer como é grande o meu amor por você”
Roberto Carlos, 1967
Roberto Carlos é a vó – a minha avó.
E olha que minha vó Geralda nem era especialmente musical. Mesmo assim, adorava o rei. Seu especial de Natal merecia mais devoção que Missa do Galo, todos diante da tevê num silêncio contrito, interrompido por um ou outro momento de karaokê.
Majestade funciona desse jeito: ninguém precisa ser especialmente musical pra se emocionar quando ouvir aquela canção do Roberto. Basta ter um coração batendo.
Porque Roberto Carlos é alguém pra todo brasileiro.
Pode ser o primeiro amor ou, quem sabe, o pai numa viagem de carro. A paixão do colégio dançando um iê-iê-iê romântico ou a tia que fumava depois do jantar. O irmão camarada que vive noutra cidade ou a noiva na festa do segundo casamento.
Pra mim, quando ouço Roberto Carlos ouço minha avó.
Escuto o riso debochado dela, e me dou conta da sorte de ter tido uma avó que fazia tricô e piadas com a mesma habilidade. Também lembro dela sentada na ponta esquerda do sofá marrom, tinha que ser logo marrom?, braço esticado pra alcançar a mão do meu avô, na poltrona ao lado. Volta o cheiro de bife à milanesa, essa madeleine tão classe média, se espalhando além do horizonte pra anunciar a hora do almoço.
(Quando fui morar sozinho, arrisquei preparar um bife à milanesa. Diante da cozinha transformada num desembarque da Normandia de ovos, farinha de trigo, farinha de rosca, sal, pimenta, carne e óleo, muito óleo, entendi o que é o amor. Amar é fazer essa bagunça de colesterol e gordura trans, como Gegé fazia quase diariamente, durante os oito anos em que morei com ela.)
Roberto Carlos é o consultório sentimental do Brasil, o divã dos amores e afetos do país. Ele não canta pra você ou pra mim, ele simplesmente canta o que você e eu sentimos – por isso sua força estranha.
O verdadeiro hino nacional é um pot-pourri de suas canções. “Como É Grande o meu Amor por Você”, poesia-palavra-cantada do disco “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, entraria no meu remix lírico e sentimental.
Hoje, eu ouço as canções que você fez para mim. Certeza que foi pra mim.
“Embriague-se sem descanso! De vinho, poesia ou virtude”
Charles Baudelaire, 1864
Claramente, poesia e virtude foram preteridas pelo vinho.
Ou pela cerveja, cachaça, tequila, vodca, uísque, gim, saquê ou qualquer coisa com a quantidade certa de etanol em sua composição.
Uma batelada de pesquisas mostra que a pandemia de coronavírus provocou uma pandemia de abuso de álcool – líquido, não em gel, apesar de hoje ser mais fácil encontrar um frasco de álcool em gel do que uma torneira de chope.
(Mesmo no Rio de Janeiro, onde bares ficam abertos e praias, fechadas.)
Por outro lado, não há registro de qualquer estudo capaz de indicar o aumento no consumo de versos livres, a elevação dos índices de rimas raras ou um crescimento de dois dígitos no mercado de sonetos.
Também não se sabe de um único paper sugerindo a multiplicação da virtude, moral ou intelectual. Uma espiada no noticiário periga apontar justamente o contrário: o vício tá levando a melhor.
Há mais de um ano trancado em casa, você provavelmente já sabe disso por experiência própria.
Um gole aqui, outro ali, e quando vê atingiu o teor alcoólico de Humphrey Bogart – o ator reclamava que o mundo estava sempre três doses atrás dele. O próprio cinema se encarregou de atualizar a blague, com o ótimo “Druk – Mais uma Rodada”, de Thomas Vinterberg.
Nele, quatro professores decidem afogar suas inquietações na bebida. Seguem um argumento pseudocientífico: num arroubo de terraplanismo biológico, o psiquiatra norueguês Finn Skarderud teria dito que humanos têm um défict de 0,05% de álcool no organismo.
Pra corrigir esse pecado original evolutivo, a solução seria encher a cara diariamente. No início, parece funcionar. O trabalho fica mais interessante e os relacionamentos, mais divertidos. Spoiler: não demora muito pra esse paraíso artificial se desmantelar.
Em seus “Pequenos Poemas em Prosa”, o francês Charles Baudelaire receita a embriaguez pra suportar o “fardo horrível do tempo” – que pode ser revisto e ampliado como a angústia diante de mais de 350 mil brasileiros mortos de doença e descaso.
Mas a OMS recomenda preterir o vinho pela poesia e pela virtude.
“Deixe que tudo aconteça a você: beleza e terror. Apenas prossiga”
Rainer Maria Rilke, 1905
A porta do consultório do Contardo Calligaris estava sempre aberta.
Isso não é uma metáfora fofa sobre acolhimento e generosidade. Ele detestava metáforas fofas, embora não lhe faltassem acolhimento e generosidade.
Isso é apenas uma constatação. Como não tinha secretária e sempre emendava um atendimento no outro, simplesmente deixava a porta destrancada pro próximo paciente.
Pouca gente devia dispensar a tranca naquele endereço da rua Batatais. O flat parecia um Edifício Master, ainda que numa versão paulistana e portanto mais limpinha. Tinha a variedade de personagens do prédio de Copacabana.
Não havia pandemia e era possível dividir o elevador com os outros frequentadores: garotas de programa, famílias do interior, sacoleiros em busca de pechinchas na 25 de Março, executivos com camisas monogramadas, travestis e gente em busca de terapia.
Durante sete anos frequentei seu divã desconfortável.
(Àqueles que, surpreendentemente, tenham notado alguma evolução neste colunista, fica o crédito ao psicanalista. Os defeitos continuam sendo exclusivamente meus.)
Logo à entrada, um quadro exibia uma figura apontando a sala de espera à esquerda: Batman. Sim, o Homem-Morcego dos quadrinhos, do seriado tosco e dos filmes que, ao contrário dele, se levam a sério demais.
Não era exatamente o que se esperava de alguém que estudou com Piaget, Lacan, Foucault e Barthes, gigantes do pensamento do século 20, que precisam apenas do sobrenome pra ser identificados.
Essa mistura de pop e erudito era sua marca. Sem falar que, claro, máscara e identidade secreta, dois clássicos de super-herói, são justamente a matéria-prima de toda análise.
Contardo falava pouco durante as sessões. Usava a palavra como Romário tratava a bola: ação mínima, efeito máximo. Um comentário breve, toque com o biquinho da chuteira verbal, mudava o jogo.
Ele ria da obsessão pela busca da felicidade. Acreditava que a vida só pode ser desfrutada plenamente com todos seus altos e baixos – como a beleza e o terror dos versos de Rilke, em “O Livro de Horas”. Apenas prossiga.
“A minha Casa é guardiã do meu corpo e protetora de todas minhas ardências”
Hilda Hilst, 1974
Antes uma casa era simplesmente uma casa – e isso não era pouco.
Significava ser um teto e, com alguma sorte, um lar. Uma pausa pra descansar entre um turno e outro da vida propriamente dita, que acontecia lá fora.
(No Brasil, com seu déficit habitacional de algo como 6 milhões de moradias, uma casa é também um privilégio.)
Desde o início da pandemia, a casa, como quase tudo do gênero feminino, acumulou funções. Seguiu sendo casa e virou outras coisas mais.
Faz hora extra como escritório virtual, academia de ginástica improvisada, restaurante 24h, bar porque ninguém é de ferro, pista de dança nos dias mais animados, caverna nos períodos mais cinzentos, divã de análise toda terça de manhã, creche e escola se você tem filhos, câmara de silêncio se não tem. Uma vida inteirinha entre quatro paredes.
Agora, a casa virou principalmente um imunizante.
A única vacina capaz de dar conta não apenas do coronavírus, como de todas suas mutações: se você não colocar o pé pra fora, a doença não mete o pé na porta.
Mas depois de mais de 365 dias de confinamento, ou algo bem parecido com isso, fica cada vez mais difícil manter a vida enclausurada. Somos um animal social – embora frequentemente mais animal do que social.
Os jogos mentais parecem não funcionar mais. Os móveis mudaram de lugar tantas vezes, que acabaram voltando pra onde estavam no começo do ano passado. As compras on line, desnecessárias e terapêuticas, são suficientes pra lotar o megacargueiro que encalhou no Canal de Suez.
(O “Ever Given” voltou a navegar, e suas bugigangas provavelmente vão chegar da China antes dos insumos pras vacinas.)
Hilda Hilst escreveu o poema “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé. De Ariana para Dionísio” na Casa do Sol, em Campinas, onde se recolheu quando decidiu se dedicar integralmente às letras. Suas obras mais importantes foram criadas lá, sem falar nos amores e amizades que circularam por ali durante quase 40 anos.
É um dos endereços mais importantes da literatura brasileira. E um lembrete da potência que uma casa pode ter.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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