Os retratos da “Enciclopédia Negra”
Além da história de 550 negros e negras icônicos para a história do país, o lançamento traz ainda retratos dessas pessoas feitos por artistas brasileiros – e que vão compor uma exposição
O protagonismo negro na história do Brasil costuma a ser esquecido, quando não propositalmente ignorado, por boa parte da sociedade brasileira. Apesar de serem silenciados pela história, negros e negras foram fundamentais na construção do que hoje entendemos como Brasil. Da luta pela liberdade à ações cotidianas, o país só existe hoje porque essas pessoas o fizeram existir. Buscando recuperar as narrativas e o passado de mais da metade da população brasileira, os autores Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz conceberam o livro “Enciclopédia Negra” (Cia. das Letras, 720 págs., R$ 89), um compilado de biografias afro-brasileiras.
Ao todo, são 550 histórias — de Abdias do Nascimento a Zeferina e Zumbi dos Palmares — que relembram as memórias silenciadas da população preta. Além de toda a pesquisa, chama a atenção as 36 ilustrações feitas por artistas plásticos negros, negras e negres, que ilustram figuras pretas que jamais foram retratadas em vida.
Os retratos também fazem parte de uma exposição com o mesmo nome, que será inaugurada dia 24 de abril na Pinacoteca de São Paulo. Além das 36 imagens presentes no livro, outros 64 retratos serão exibidos na mostra. Gama conversou com um dos autores da Enciclopédia, o também artista Jaime Lauriano, para entender qual o processo por trás dos retratos que ilustram o livro.
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G |Como se deu a escolha dos artistas que ilustrariam os nomes da enciclopédia? Qual foi o critério?
Jaime Lauriano |Quando eu fiz a seleção dos artistas, busquei não trabalhar somente com nomes já consagrados da arte contemporânea. Queríamos trazer novos olhares e novas abordagens sobre as questões debatidas. Fizemos uma grande pesquisa no Brasil inteiro, consultamos curadores e artistas e criamos uma constelação de pessoas que trouxeram surpresas agradáveis para a nossa produção. Buscamos uma multiplicidade de abordagens, estilos, visões e poéticas, afinal, somos um povo complexo e nossa história também o é.
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G |De que maneira os artistas foram pautados para retratar os nomes citados?
J.L. |Fiz questão de alinhar a produção poética dos artistas com a história de vida dos biografados. Com essas informações, fui preenchendo a lacuna entre retratados e retratantes e escolhi quem faria o quê. Queria que houvesse uma conexão significativa logo no primeiro contato, que fosse um retrato que fizesse sentido para quem eles são e para suas respectivas poéticas.
O Daniel Lima, um artista de São Paulo que tem presença muito forte no ativismo negro, ficou encarregado de retratar líderes de revolta. O Ayrson Heráclito, artista baiano que trabalha bastante com a religiosidades afro-brasileiras, recebeu três líderes religiosos, mas me pediu que todos fossem baianos. Já Renata Felinto, artista que tem uma pesquisa sobre feminismo negro, recebeu três mulheres e dois homens, mas me pediu para trocar esses dois homens por outras duas mulheres.
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G |Eles foram pautados para serem retratos mais figurativos ou tiveram liberdade criativa?
J.L. |Optamos por deixar todos os artistas livres para fazerem a criação deles, mas chegamos a discutir o que faríamos caso recebêssemos uma obra historicamente incorreta. Isso acabou acontecendo com o retrato de Daniel, líder de uma revolta, feito pelo Dalton Paula. Olhamos para a roupa que Daniel estava usando e vimos que ela não era “correta”, então questionamos Dalton. Ele nos respondeu: “Ele poderia não ser assim, mas é assim que queria ser retratado.” Tivemos outro caso semelhante com o artista Tiago Sant’Ana, que retratou um dos biografados com uma camisa cor de rosa, sendo que na época nem camisa existia. Tiago também nos respondeu que era assim que aquela pessoa queria ser retratada e, a partir daí, entendemos que deveríamos deixar todos os artistas livres para criar. Não é uma simples ilustração do verbete, mas sim uma interpretação. Nós convidamos os artistas para dar uma outra tônica a essas histórias, quem somos nós para falar se fulano é assim ou é assado? É uma questão subjetiva, um retrato de alguém que só conhecemos por meio de informações textuais.
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G |Qual retrato te marcou mais? Por quê?
J.L. |Essa eu não vou poder te responder [risos]. Se eu falar duas, vou me complicar com outras 34 pessoas, então vou falar todas. Eu estou brincando, mas existe um fundo de verdade. Todas as obras me modificaram profundamente, foi um processo de ressignificação da minha própria existência, muito intenso e muito rico.
Cada obra teve o seu jeito e a sua particularidade e, na troca com os artistas, entendi a importância de conhecer as histórias dos meus ancestrais. O meu povo existiu e moldou a história do meu país, isso me valoriza muito enquanto ser humano. Assim como essas pessoas contribuíram com o futuro, eu estou pegando esse bastão e levando adiante.
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