O corpo em isolamento
Mudanças na prática de exercícios, na alimentação e na rotina de trabalho estão provocando alterações físicas em todos nós durante a pandemia
Como você tem tratado seu corpo durante o isolamento pela covid-19? Tem se exercitado menos ou aproveitado o tempo extra para tirar do ostracismo aquela velha esteira de corrida? Extrapolou a cota do delivery ou passou a cozinhar mais e a comer de forma mais saudável? E o trabalho? Tem varado noites e acumulado horas extras ou está aproveitando a calma de casa para promover pequenos momentos relaxantes ao longo do cotidiano profissional?
Embora o isolamento seja recebido de forma diferente por cada pessoa, numa coisa médicos e especialistas concordam: o estado prolongado de pandemia está promovendo grandes mudanças nos hábitos e comportamentos da população. Passar mais tempo em casa implica, por exemplo, em uma movimentação e uma prática de exercícios em média bem menor que antes. Tendência que, se não for combatida, pode gerar problemas de saúde em grande escala.
Assim, a falta de exercícios, as mudanças nos hábitos alimentares e o home office, entre vários outros elementos, estão causando alterações no corpo de quem já está há mais de um ano em isolamento, dizem especialistas no tema. A seguir, Gama lista algumas delas, assim como formas de evitar cair na armadilha de hábitos pouco saudáveis na pandemia.
Mesa farta
A princípio, as mudanças nos hábitos alimentares no Brasil e no resto do mundo durante a pandemia soaram positivas. Pessoas cozinhando mais, fazendo mais refeições em casa, comendo à mesa com a família… todos hábitos associados a uma alimentação mais saudável e in natura, explica o professor da Faculdade de Medicina da USP Bruno Gualano.
Responsável por um estudo focado na alimentação das mulheres brasileiras na pandemia, ele também identificou, no entanto, outras modificações não tão favoráveis assim. Se o hábito de cozinhar em casa aumentou 28%, o uso de serviços de delivery cresceu vertiginosos 146%. “Nesse caso, a experiência mostra que a maior parte dos pratos pedidos são de fast food ou ultraprocessados, alimentos que podem causar danos à saúde.”
Cerca de 35% dos brasileiros tiveram uma mudança de peso significativa na pandemia, para mais ou para menos
O costume de “beliscar” nos períodos ociosos também teve um crescimento de 23% entre as mulheres durante o período, de acordo com a pesquisa. O hábito pode ser considerado perigoso pois costuma ser associado a alimentos industrializados, de pouco valor nutricional. E, além do aumento do consumo de bebidas alcoólicas, caiu o número de pessoas que seguem dietas, uma tendência puxada, segundo Gualano, pela dificuldade de adicionar a restrição alimentar àquelas que já estão sendo impostas hoje pela pandemia e o isolamento social.
Todos esses fatores, caso sejam mantidos por um longo período de tempo, podem levar a uma piora no quadro de saúde da população, com a possibilidade de aumento do peso e desenvolvimento de doenças. Na verdade, um estudo do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição (Nupens), da USP, em parceria com outras universidades, mostrou que 35% dos brasileiros tiveram uma mudança de peso significativa na pandemia, para mais ou para menos. Uma parcela de 19,7% teve ganho de dois quilos ou mais no período.
“O impacto da má alimentação na saúde geralmente é sentido a longo prazo, caso as tendências sejam mantidas”, afirma o professor. “Para evitar isso, é preciso que as autoridades desenvolvam políticas públicas com o objetivo de mudar esses hábitos na população.”
O insustentável peso do sedentarismo
Outra tendência percebida em todo o mundo foi uma redução drástica da atividade física, no que está sendo visto como uma “pandemia de sedentarismo”. Uma pesquisa conduzida pela Fitbit, empresa americana de produtos eletrônicos e fitness, apontou que o isolamento causou uma queda brusca no número de passos dados por dia entre seus usuários.
Além disso, as pessoas têm passado muito mais tempo sentadas ou deitadas durante o dia no isolamento, acrescenta Gualano, que é especialista em fisiologia do exercício. Apesar de serem negativos para todos os indivíduos, esses hábitos podem ter consequências ainda piores para pessoas obesas ou que já sofrem de condições crônicas anteriores.
“O sedentarismo contribui para a piora do quadro geral de saúde, principalmente para quem tem uma reserva de atividade física menor”, diz o especialista. O ideal, segundo ele, é evitar pensar que a pandemia representa um salvo-conduto para fazer o que der na telha, ignorando práticas saudáveis.
Qualquer atividade física, ainda que de baixa intensidade, é melhor do que nenhuma
Para não cair nessa armadilha, Gualano oferece duas opções: fazer exercícios em casa mesmo, de preferência com orientação de profissionais na internet, ou recorrer a práticas como caminhadas e pedaladas ao ar livre — mas, devido ao isolamento, apenas em regiões com poucos pedestres, de preferência de manhã cedo, para evitar aglomerações, e sempre usando máscara.
Qualquer atividade física, ainda que de baixa intensidade, é melhor do que nenhuma, lembra o professor. Portanto, vale de tudo, desde caminhar entre quatro paredes até subir e descer lances de escada.
Pele para que te quero
O impacto de tanto tempo de pandemia e das medidas recorrentes de isolamento pode ser sentido na pele. Em alguns casos, literalmente. Marcia Senra, médica e coordenadora do Departamento de Psicodermatologia da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), aponta o surgimento de quadros de doenças de pele como sintomas conectados a problemas psicológicos decorrentes da pandemia.
“Nesse período de um ano, eu e outros colegas atendemos uma infinidade de casos de queda de cabelo, herpes zoster e quadros dermatológicos ligados a gatilhos estressores, como depressão ou ansiedade”, afirma a médica.
Para evitar doenças na pele, o ideal é cuidar do bem-estar de maneira geral, com sono, exercícios e alimentação saudável
Além de reforçar a ligação do estado emocional com a saúde da pele do paciente, Marcia diz que a exposição ao sol, reduzida para muitas pessoas devido ao isolamento, ajuda na cura de problemas como a dermatite seborreica e a psoríase. E a pandemia também estaria afetando os tratamentos de alguns desses males, já que inibe a ida aos consultórios. E, feito pela tela do computador, o diagnóstico dermatológico geralmente não tem a mesma eficiência, alerta a profissional.
Para evitar desenvolver alguma doença na pele, o ideal é cuidar do bem-estar de maneira geral, tratando de ter uma boa noite de sono, praticar atividades físicas regularmente, se alimentar de forma saudável etc. “É preciso aprender a lidar com cada caso separadamente. Não existe receita de bolo.”
De cérebro para corpo
Assim como no caso da pele, um estado psicológico instável também pode levar a outras consequências físicas. Portanto, questões como a falta de contato pessoal, de práticas de lazer e o excesso de trabalho podem incitar quadros de estresse ou burnout, que, por sua vez, conduzem à exaustão física também.
É o que o especialista em psicologia hospitalar e sanitarista Ricardo Sebastiani chama de falência adaptativa. “Um quadro de colapso. O que vai vigorar é a lei da física, de que a corrente estoura no elo mais frágil. Então, se a pessoa tem alguma fragilidade, pode sofrer com uma série de quadros, como infarto, úlcera, hipertensão, entre vários outros.”
Segundo o médico, o atual momento de retorno a um isolamento mais severo é ainda mais grave, pois acontece num ponto de saturação, mais de um ano após o início da pandemia. Assim, o resultado pode ser uma onda de distúrbios psicológicos e físicos, que deve ter consequências graves e duradouras na população.
Escritório em casa
Após mais de um ano de home office organizado às pressas, o corpo também já começa a pedir a conta dos maus-tratos. Seja por assentos pouco ergonômicos, mesas em altura inadequada ou mesmo o tempo prolongado que passamos sentados em posturas danosas, muitas pessoas têm sentido os efeitos do trabalho no isolamento.
Problemas de postura podem estar ligados a questões que vão desde indigestão até a inibição de orgasmos
Uma reportagem da revista New Yorker sobre o tema aponta que, segundo especialistas, para cada centímetro que a cabeça sai do eixo, a pressão sobre o pescoço e as costas aumenta em cerca de cinco quilos. “Uma pesquisa feita entre 778 profissionais que trabalham com software durante o isolamento, na última primavera, descobriu que dores nos ombros, cotovelos e pulsos duplicaram”, diz o texto, que associa problemas de postura a questões que vão desde indigestão até a inibição de orgasmos.
A falta de condições favoráveis para o trabalho e estudo em casa é um problema que pode afetar a saúde de crianças, adultos e idosos, diz Gualano. Quanto mais tempo sentado, maiores as chances de sofrer com dores ou desconforto. O ideal, segundo o especialista, é interromper o trabalho a cada uma hora, ainda que para uma atividade física rápida, evitando acumular longos períodos ociosos.
Ajuste-se: cabeça ereta, costas no encosto da cadeira, nádegas na curva do assento, ombros relaxados, pernas descruzadas e pés no chão
Além disso, a exposição prolongada às telas pode ter efeitos negativos sobre os olhos. Uma pesquisa britânica feita com trabalhadores em home office mostrou que um a cada três deles, ao final do dia, relatam sintomas de fadiga ocular.
Então vale prestar atenção. A dica da New Yorker para evitar uma postura problemática no home office, de acordo com a indicação de especialistas, é a seguinte: costas tocando o encosto da cadeira, nádegas aninhadas na curva do assento, ombros relaxados, pernas descruzadas, joelhos dobrados num ângulo reto, pés no chão e cabeça ereta. Ah, e vale lembrar, a tela do computador deve estar colocada na linha dos olhos, à distância de um braço.