Isabelle Moreira Lima: vinho e aquecimento global — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Como o aquecimento global interfere no que você bebe

A mudança climática já alterou o mapa da produção e agora começa a mudar as uvas que entram na sua taça

24 de Março de 2021

O vinho é um produto agrícola dos mais sensíveis que existem. Como já falei por aqui, está sujeito a alterações de terreno, de exposição solar, de altitude, e também do clima. Estas últimas normalmente são flutuantes e fundamentais para determinar se uma safra vai ser melhor que outra. As características fundamentais de uma região se mantêm. Ou se mantinham. Com a aceleração do aquecimento global tudo isso muda de figura.

Em toda apresentação a que assisti desde que ingressei na área, sempre ouvi que o mais importante para que o vinho seja especial é o cuidado com os vinhedos. Mais recentemente, com a moda do estágio em madeira perdendo força e dando lugar a bebidas mais frescas e com identidade de terroir, isso se intensificou: pode-se dizer que o vinho hoje é feito mais no campo do que era há meio século. Mas, como cuidar dos vinhedos, se o clima muda?

O aquecimento global é a grande questão atual da produção de vinho mundialmente, e pode mudar radicalmente o que se bebe no mundo inteiro. Na verdade, já começou a transformar muita coisa, a começar pela geografia da produção. A Inglaterra, um país que sempre contou com bons bebedores e merchants mas nunca teve clima para a plantação de videiras, virou um país produtor de espumantes. A notícia mais inusitada veio da França, quando a maison de Champagne Taittinger anunciou que havia comprado terras em Kent, no sul do país, para produzir seu Domaine Evremond. No hemisfério norte, as fronteiras estão se expandindo ao norte — o norte da Alemanha, os países escandinavos, que nunca produziram nada, agora testam uvas híbridas. No hemisfério sul, vemos uma produção belíssima de Pinot Noir na Patagônia argentina, com a instalação de vinícolas a partir dos anos 2000, caso da Família Schroeder, que está na latitude 39°.

O vinho hoje é feito mais no campo do que era há meio século. Mas, como cuidar dos vinhedos, se o clima muda?

A mudança de clima também mexe em áreas tradicionais. A região francesa de Bordeaux, onde estão os grandes châteaux e alguns dos vinhos mais caros do mundo, incorporou uvas estrangeiras para se adaptar aos efeitos da mudança climática e tentar reduzir minimamente a mudança de perfil de sua bebida. A partir deste ano, podem ser cultivadas as tintas Marselan, Touriga Nacional, Arinarnoa e Castets; e as brancas Alvarinho e Liliorila. Claro, há uma série de regras e restrições do que pode ocorrer na terra e no blend do vinho, mas, de todo modo, é simbólico ver uma região tão fechada em suas regras aderir à experimentação e a lidar com a possibilidade de perder uma de seus maiores jóias, a Merlot tal qual a conhecemos.

A Califórnia, que não tem regras tão rígidas, também estuda mudanças e imagina um mundo em que a Cabernet Sauvignon não é central. As uvas portuguesas, acostumadas a um sol inclemente, bem como as do sul da Itália e algumas espanholas, devem brilhar nesse cenário. Alguns já testam a Touriga Nacional, a Tempranillo e a Aglianico por lá.

Do outro lado, os que tentam conter os efeitos que já são sentidos no tempo têm corrido para as montanhas — em Mendoza, na Argentina, os Catena já plantaram a 1,5 mil metros de altura ao pé da Cordilheira dos Andes. A ideia é que apesar de estar exposto a mais sol nas alturas, há mais amplitude térmica. Com noites frescas e dias ensolarados as uvas amadurecem com mais estabilidade e alcançam mais qualidade de sabor, menor amargor, mais acidez.

Há também os que mudam suas plantações para obter uma insolação mais amistosa e fugir do estresse hídrico nas plantações, algo hoje bastante comum na região do Douro, no norte de Portugal.

O raciocínio lógico nos leva a crer que com mais calor o que se teria seriam vinhos mais maduros e volumosos, das uvas que se dão bem no calor, e pensar no perfil de vinhos de regiões quentes como os Shiraz australianos, chamados por aí de “fruit bombs”, ou os Zinfandel californianos, ou até mesmo os tintos Alentejanos.

Mas a mudança climática não opera exatamente seguindo uma lógica. O que se espera é instabilidade, o que é ainda pior e imprevisível em muitos casos, com a possibilidade, por exemplo, de geadas fora de hora (no momento certo, ajudam na dormência da videira, parte do ciclo da fruta fundamental para sua qualidade; no errado, podem destruir fruta ou floração), de chuvas às vésperas da colheita (terrível para a diluição da fruta e, logo, do vinho), ou até mesmo de secas, como as que a Europa vê hoje.

A parte triste é que logo quando se busca vinhos mais puros e naturais, com acidez, fruta e leveza, eles podem ficar mais raros

Um estudo que acaba de ser divulgado pela Universidade de Cambridge as secas na Inglaterra, desde 2015, têm sido as mais severas dos últimos 2,1 mil anos. A justificativa? A mudança climática causada pelo homem, afirma a pesquisa que reconstruiu o clima de verão nos dois milênios ao analisar carvalhos vivos e mortos na República Tcheca e na Alemanha. Segundo o mesmo estudo, não se pode esperar mais calor em todos os lugares, mas clima extremo. Algumas localidades podem ficar até mais frias e chuvosas.

A parte mais maluca dessa história toda é que, por enquanto, a mudança climática trouxe grandes safras, antes bissextas, a lugares como Borgonha, Bordeaux, na França; Piemonte, na Itália; e Mosel, na Alemanha de forma mais corriqueira. Agora, ano após ano, os produtores dessas regiões se surpreendem com uma escalada na qualidade de suas bebidas. Mas até isso tem um lado preocupante: com a qualidade sobe também o preço cobrado pela terra e, especialmente, pela bebida.

A parte mais triste, além de uma possível extinção de variedade ou estilo, é que justamente quando cresce o movimento que busca vinhos cada vez mais puros e naturais, sem o uso de aditivos na fase de vinificação, e se quer uma acidez mais alta, uma fruta mais pura e uma leveza muito específica, lida-se com o aquecimento. Para alcançar vinhos com essa elegância, é preciso ter características como amplitude térmica, vento, e quanto mais estabilidade melhor. Devem ficar mais caros e raros.

Saca essa rolha

PARA SENTIR O PODER DO CALOR NOS TINTOS
Régia Colheita DOC Alentejo tinto traz o poder do sol do sul de Portugal ao mostrar um geleião maravilhoso de fruta vermelha com um toque de especiarias. É cheio e volumoso, macio e delicioso. Os Cabernet do Chile são muito solares, vale provar o clássico Montes Cabernet Sauvignon Reserva 2017, que vai melhorar qualquer carne que se sirva junto. E o Segal Merlot 2018, israelense da Galileia, é um veludo perfeito na boca.

PARA SENTIR O PODER DA ALTITUDE NA ACIDEZ
A região de Beira e a de Beira Interior, em Portugal, é uma nova fronteira e os vinhos de Rui Madeira são cultivados em altitude com castas muito florais e deliciosas. Vale provar o Beyra Branco 2019. Outra boa dica é o moderníssimo Aquí Estamos Todos Locos Sauvignon Franc, natural, cultivado e produzido no Vale de Uco a uma altitude de 1.300 metros acima do nível do mar.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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