Vinho sob o signo do feminismo — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Vinho sob o signo do feminismo

O mundo do vinho é machista, mas há estrelas feministas, ainda que silenciosas, fazendo história. É o caso de Laura Catena, que pôs a Argentina no mapa dos grandes vinhos

24 de Fevereiro de 2021

Ando imersa em leituras e pensamentos sobre o papel da mulher, seu espaço (meu espaço?), seus questionamentos (meus questionamentos?), lendo livros, fazendo entrevistas, participando de debates. E, é claro, isso vai para todos os lados, da vida pessoal à profissional, passando, é claro (no meu caso), pelo vinho. Qual é o papel da mulher no mundo do vinho? Qual deve ser seu campo de atuação? Ué, ela deveria estar onde o homem está. Ainda não é assim totalmente, mas o número de mulheres à frente de negócios, do campo e da enologia vem crescendo nos últimos anos.

Os problemas existem e são muitos, como foi contado nesta reportagem sobre o machismo e o assédio, seja ele sexual ou moral, neste universo. Mas aos poucos as mulheres ocupam lugares de decisão e liderança, com o barulho das denúncias ou silêncios estratégicos.

As pessoas que mais admiro no mundo do vinho são mulheres. Da crítica Jancis Robinson, maior enciclopédia ambulante do universo e papilinha de ouro, à Silvana Aluá, que acabo de conhecer, mas já fiquei impressionada. É sommelière e criou a Confraria das Pretas, que reúne mulheres negras para beber e disseminar conhecimento sobre uma bebida sempre vista como algo tão elitista. Séria e incansável, Silvana é firme em suas posições e tem lutado pela representatividade no mundo do vinho.

Aos poucos as mulheres ocupam lugares de decisão e liderança, com o barulho das denúncias ou silêncios estratégicos

Há também Laura Catena, exemplo dessa nova fase de mulheres em lugares estratégicos e de poder. Ela é filha de Nicolas Catena, o homem que transformou uma pequena vinícola familiar em uma grande empresa, e integrante da quarta geração de uma linhagem produtora de vinhos. Ok, a cama estava feita, bastava deitar. Mas o curioso é que ela tentou fugir dessa soneca e foi fazer medicina, não queria entrar nos negócios da família, o que foi motivo de desgosto para os Catena. Estudou nos EUA e passou a atuar como médica de emergência, onde atua até hoje por cerca de seis meses do ano. Acontece que, a convite do pai, foi dar uma mãozinha em uma feira nos Estados Unidos nos anos 1990 e percebeu o pouco interesse dispensado à Malbec, a joia mais valiosa que sua família — e seu país — tinham a oferecer.

Aquela viagem foi um ponto de virada histórico pessoal, mas nacional também. Laura descobriu ali que tinha uma missão: explicar o potencial da Malbec ao mundo e colocar a Argentina no mapa dos grandes vinhos. Cada vez mais passou a integrar-se com os negócios da família chegando ao que é hoje, não só a nova geração de uma potência argentina, mas a fundadora de um instituto científico que comprova o poder do terroir e a importância da Malbec, o Catena Institute of Wine.

Há três semanas, seu instituto publicou o maior e mais extenso estudo já publicado de uma única uva — a Malbec, claro — em vários locais diferentes de Mendoza, para comprovar a influência do terroir nos vinhos ali produzidos. A pesquisa, publicada na Nature, diz que o terroir pode ser quimicamente diferenciado de safra para safra em regiões maiores e em parcelas menores. Ao todo, foram analisadas três grandes regiões, seis departamentos, 12 indicações geográficas e 23 parcelas individuais (áreas menores de 1 hectare) em três safras diferentes.

A pesquisa é importantíssima porque eleva Mendoza a um patamar semelhante ao encontrado na Borgonha, uma das regiões vitivinícolas mais celebradas do mundo: e diz que dez passos para um lado ou para outro podem mudar o perfil de um vinho por completo. “Nosso estudo valida o que os monges cistercienses de Borgonha chamaram de ‘cru’. Agora, pela primeira vez na literatura científica, o termo francês ‘cru’ recebe uma versão em espanhol, ‘parcela’, já que os vinhos vêm de Mendoza”, ela afirmou na divulgação.

Laura é exemplar da eterna gincana que pode ser a vida da mulher em suas multifunções, mas também do que uma mulher pode alcançar

Quando a Gama ainda era um projeto, entrevistei Laura Catena. E ela me contou como se dividia entre esses dois mundos. Seu segredo, ela diz, é ser organizadíssima e não se comprometer à perfeição — “aceitar o B+”. Ela não abriu mão de nada do que queria: cada vez mais assume funções de comando na vinícola, tem o instituto, já escreveu dois livros sobre vinho (entre eles, o excelente “Ouro nos Vinhedos”), tem filhos e é casada. Passa parte de cada mês na Argentina, parte na Califórnia, onde vivem os filhos e o marido e onde atua como médica, e tem uma rodada diária de telefonemas para estar a par de tudo o que está acontecendo na vinícola todos os dias.

Por mais que estejamos falando de privilégio, afinal é a herdeira de uma grande empersa, a rotina de Laura é exemplar da eterna gincana que pode ser a vida da mulher em suas multifunções, mas também do que uma mulher pode alcançar — ela realmente colocou um país num mapa, elevou uma uva a status de queridinha em muitos países e tem feito um trabalho de pesquisa importantíssimo que classifica também todos os clones da variedade já usados no país, entre outros esforços. Laura Catena é discreta, não a ouvi falar ou escrever sobre feminismo per se, o papel da mulher, a liderança. Mas se ela não é feminista, francamente, não sei o que é.

Às que estão em lugar de menos privilégio e enfrentam barreiras mais duras do que a multitarefa — de novo, o mundo do vinho é permeado pelo machismo como mostram relatos até dentro de organizações sérias — deixo o exemplo da estratégia adotada pela sommeliere Gabriela Monteleone, que apostou na sororidade como alternativa a esse cenário. Para ela, a saída tem sido buscar parcerias e criar projetos entre mulheres. “É um fortalecimento importante. Mostra que outro comportamento é possível.”

Saca essa rolha

PARA CONHECER OS VINHOS DE LAURA CATENA
Infelizmente, os vinhos da família Catena estão cada vez mais caros. São produtores de grandes Malbec, a partir da linha de entrada, e são expert em vinhos de altitude. Seus brancos feitos com Chardonnay, como o Adrianna White Bones, é uma coisa de louco. Seu projeto pessoal, Luca Wines, também vale o investimento. Quem sabe para comemorar uma data especial?

PARA SABER MAIS DO TERROIR ARGENTINO
A vinícola Alto Las Hormigas também tem feito pesquisas e experiências no terroir de Mendoza com a Malbec. Outra ideia interessante é comparar o Pinot Noir feito em Mendoza por Paul Hobs, o Pulenta Estate IX 2018, com algum exemplar patagônico, como o Familia Schroeder Saurus Pinot Noir 2019. É potência versus elegância no mais alto grau.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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