Bianca Santana
Cesta básica não basta
É urgente a formação para produzir comida de verdade nas periferias das grandes cidades, sem agrotóxicos, valorizando o saber e a autonomia das mulheres e da juventude negra
Mais de 10,3 milhões de pessoas passam fome no Brasil hoje. Negras e negros, além da falta de acesso à água, saneamento básico, vacina, voltaram a não ter comida na mesa. A Coalizão Negra por Direitos está articulando uma mobilização nacional neste 18 de fevereiro para a volta do auxílio emergencial de R$ 600 até o fim da pandemia e a vacinação para todas e todos pelo SUS.
A mobilização popular é fundamental, bem como a cobrança para que o Estado cumpra seu papel constitucional. Ainda assim, diante da destruição de direitos e a promoção da política de morte do atual governo, além de cobrar, a organização comunitária e popular em busca por autonomia se impõem. Com a pandemia de covid-19, além das mais de centenas de milhares de mortes notificadas, o agravamento da crise econômica tem deixado pessoas negras e pobres ainda mais vulneráveis. Em 2020, a UNEafro, uma das 170 entidades que compõem a Coalizão, mobilizou uma campanha de doações para a distribuição de mais de 25 toneladas de alimentos em 57 territórios, extrapolando os 39 territórios onde estão articulados núcleos de educação popular.
Precisamos de soberania alimentar. Cada comunidade deve ter o direito de decidir sobre as formas de viver e os alimentos a consumir
E por mais que as cestas básicas sejam importantes para garantir a segurança alimentar de milhares de pessoas, essa é uma ação insuficiente, limitada e insustentável. Precisamos trabalhar por soberania alimentar. Cada comunidade deve ter o direito de decidir sobre suas formas de viver e alimentos a consumir e produzir. É necessário que o movimento negro ubano aprenda com o movimento quilombola e campesino a travar a luta popular também nas cozinhas, quintais, terrenos comunitários.
O livro “Mulheres e Soberania Alimentar – Sementes de mundos possíveis”, de autoria coletiva de dez mulheres, publicado pelo Instituto PACS com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, ensina, de um ponto de vista feminista, como soberania e segurança alimentar são essenciais à garantia de direitos humanos, alimentação adequada, justiça social, de gênero e raça. A apresentação do livro, assinada por Bernardete Monteano, explica do que se trata a soberania alimentar:
“Em 1996, a Via Campesina propôs o princípio de soberania alimentar como alternativa a políticas neoliberais. Soberania alimentar é o direito dos povos de decidir sobre suas políticas de agricultura e produção de alimentos, incluindo a defesa de culturas alimentares, frente ao capitalismo, não deixando de produzir, trocar e consumir conforme seus costumes e culturas. Trata-se também da construção de relações entre homens e mulheres, em que o machismo e o autoritarismo masculino não prevaleçam e não reforcem a divisão sexual do trabalho, que tanto oprime historicamente mulheres do campo e da cidade”.
Mulheres e homens negros das periferias de São Paulo podem encontrar em sua ancestralidade rural e quilombola um caminho de existência nutricional e econômica autônoma e saudável que é também de resistência coletiva. Como afirmam no artigo “Mulheres Invisíveis: refletindo sobre direito humano à alimentação, mulheres e agroecologia” Aline Lima e Ana Luisa Queiroz: “Através da produção em pequena escala, dedicada à família e às trocas com a vizinhança, as mulheres agricultoras têm enfrentado a ampliação do agronegócio, seus venenos e transgênicos, tendo por base a preservação de saberes tradicionais, trabalhando como guardiãs de sementes”.
Na falta de acúmulo e experiência coletiva neste debate e, das novas gerações nascidas nas grandes cidades, em lidar com a terra, precisamos aprender com comunidades quilombolas, com a Conaq, com grupos como o MST, a Teia dos Povos, a Cooperapas, a Rede Permaperifa, a Rede de Agricultoras Paulistanas Periféricas Agroecológicas. Além do apoio à luta do campo, da reforma agrária, da demarcação de territórios, é urgente a formação para produzir comida de verdade nas periferias das grandes cidades, sem agrotóxicos, sem transgênicos, valorizando o saber e a autonomia das mulheres e da juventude negra, cuidando da água e da terra.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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