Coluna do Marcello Dantas: Se Oriente, Rapaz (carta ao neto) — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Se Oriente, Rapaz (carta ao neto)

Construímos um mundo cheio de falhas e somente o desenvolvimento da sua sensibilidade pode te habilitar a criar uma versão melhor

10 de Fevereiro de 2021

José Francisco, você me fez avô. Nos seus quatro anos de vida já me ensinou tantas coisas. Outro dia no avião, quando me perguntou o que estava escrito no folheto de segurança, você me olhou fundo nos olhos e me disse: Vovô, eu não sei ler. Me lembrei da sensação que é ser criança e poder ver as letras como desenhos ou grafismos. Assim como é para a maior parte de nós vermos os caracteres orientais. Lembrei-me da minha infância ao descobrir que as letras faziam sons e os sons fazem ideias. Assim acontece o nascimento da linguagem.

Você, José, nasceu em um mundo que já não é o mesmo de hoje. Em quatro anos tudo mudou. Em 2017, as pessoas trabalhavam em escritórios amontoados, passavam a vida em engarrafamentos, compravam tudo em lojas e eu pelo menos não passava uma semana sem entrar em um avião. Tive que voar para te conhecer. Mas o mundo que você vai crescer já está diferente, será tão virtual quanto real, e se você for sábio vai equilibrar os dois. Seus amigos e colegas poderão morar em qualquer lugar do mundo. Você não vai querer um emprego, mas você irá trabalhar muito, muitas vezes com colegas não humanos. Sua inteligência será maior do que a dos seus pais e avós, se você souber se harmonizar com as máquinas ao seu redor.

Quando você nasceu o mundo era centrado no indivíduo, no império americano. Talvez você só saberá o que foi isso pelos livros de história

É importante que você saiba que nós construímos um mundo cheio de falhas e que somente o desenvolvimento da sua sensibilidade pode te habilitar a criar uma versão melhor. Aprender a nadar, montar e lutar assim como a amar a natureza, os outros e os animais vão fazer de você um ser capaz de criar coisas que farão diferença. A lição mais importante que aprendi nessa vida é que devemos respeitar as outras espécies. Invadir os territórios das outras formas de vida pode nos custar a nossa vida. Eu estou no mundo há cinco décadas, mas juntos conhecemos uma pandemia. Você no alto do seu um metro e cinco já sabe que um vírus pode tomar o nosso planeta inteiro. Mesmo nesse momento, sua mãe conseguiu equilibrar as demandas e te proporcionar vivências únicas próximo do afeto de tantos que te circundam. Mas nem sempre é assim. Apesar do amor ser uma condição animal, também é um privilégio nesses tempos difíceis que vivemos. Eu adoro te ver crescer e aprender contigo. E agora você está abrindo um novo portal de conhecimento até mesmo para mim. Decidimos que estudar mandarim é tão importante quanto o inglês e o português, não pelo papel desse país na economia mundial. Mas para que você aprenda a ler o mundo sobre outras perspectivas. Pela simples razão que tudo merece consideração.

Quando você nasceu o mundo era centrado no indivíduo, cultuavam o império americano. Talvez você só aprenda o que foi isso nos livros de história. Vão prosperar no mundo os que entenderem o poder da coletividade. Você vai ter que aprender a pensar fora da caixinha e aceitar a diversidade de pontos de vista e de culturas. O Oriente não te será uma realidade distante mas um lugar para buscar convergências.

Você vai crescer para aprender a duvidar de tudo o que vê, mas respeitar tudo o que cheira. Você precisará imaginar o invisível e a visualizar a sua imaginação. José, você descobrirá que são muitas verdades e que a sua não é melhor do que a de ninguém. E que os ventos mudam e as coisas passam. Mas existem algumas coisas que não voltam jamais. Entre elas está na sensação de olhar para uma letra e não saber o que ela quer dizer. Também é lindo o processo de desvendar seus significados seja em Han, seja em Romanos. Entre suas raízes e suas antenas você descobrirá que a vida é breve e frágil então, se oriente, rapaz.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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