Coluna da Winnie Bueno: A perenidade do repúdio contra o racismo — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

Basta

Nenhum homem branco seria espancado até a morte depois de fazer suas compras em um supermercado. Por que a sociedade brasileira deveria aceitar em silêncio a morte de Beto?

04 de Janeiro de 2021

Na vida há momentos para dizer sim, para dizer não e para dizer basta. O assassinato de João Alberto é um desses momentos para os quais é preciso dizer basta. A sociedade brasileira e o mundo assistiram estarrecidos às cenas brutais desse crime; nos tornamos testemunhas da dinâmica daquele ato brutal. João Alberto, o Beto, foi imobilizado, espancado, sufocado e morto. É verdade que nada trará Beto de volta ao convívio de seus familiares e amigos. E todos nós sabemos o motivo: assistimos a ele inúmeras e repetidas vezes. Beto foi assassinado pelo racismo.

Quando as primeiras imagens da brutalidade começaram a circular nas redes sociais, as manifestações de repúdio foram imediatas. Era, então, 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, data forjada pelo movimento negro para relembrar a resistência que o Quilombo dos Palmares representou na luta contra a escravidão e por liberdade. Ao longo dessas última três décadas, o 20 de novembro tem sido um dia especial para reivindicar justiça social para a população negra brasileira e protestar veementemente contra o processo de desumanização de negros e negras nesse país.

As manifestações de repúdio no caso de Beto foram externalizadas de múltiplas formas: em muitas cidades pessoas foram para frente de filiais do Carrefour exigir justiça; organizações e entidades negras por todo o país rapidamente ingressaram com ações junto ao judiciário; figuras públicas expressaram sua incredulidade diante das cenas nas redes sociais. Mas passadas algumas semanas, mesmo perante a persistência da morte de pessoas negras, as manifestações contra o racismo foram trocadas por atuações institucionalizadas que pouco dialogam com a necessidade de dizermos “basta!”.

Alguns setores optaram pela via de precificar algo que para nós não tem preço: a humanidade negra. Somos de uma tradição do movimento negro e de mulheres negras que é mobilizada a partir da ancestralidade de matriz africana e de pressupostos civilizatórios que dão centralidade à vida em seu sentido amplo e comunitário: que vidas negras importam — e muito. Por isso nosso compromisso é indissociável de uma radicalidade social que exige que homens, mulheres, jovens e crianças negras não tenham seu ciclo da vida interrompido pela violência nefasta do racismo.

O lucro não pode estar acima dos valores morais que resguardam a vida e preservam o respeito à cidadania

O lucro não pode estar acima dos valores morais que resguardam a vida e preservam o respeito à cidadania. Assim, e não por acaso, o objetivo de cobrar a responsabilização dos envolvidos no brutal assassinato de um homem negro, pai, marido e filho é o que faremos e insistiremos sem abrir mão do compromisso com a dignidade do povo negro brasileiro. O clamor por justiça e por respeito alicerça a mobilização para exigir que este violento episódio não seja mais um episódio. Ele precisa ser o último.

Dois meses depois que Beto foi assassinado questionamos o quanto a sociedade brasileira está disposta a romper com o contrato racial do qual nem todos brancos são signatários, mas dele se beneficiam e solapam o direito de grandes maiorias. É preciso refletir: nenhum homem branco seria espancado até a morte depois de fazer suas compras em um supermercado. Por que a sociedade brasileira deveria aceitar em silêncio a morte de Beto? Por que estaríamos mais preocupados com a normalidade de atuação da multinacional francesa do que com o sangue de Beto esparramado no chão frio de seu estacionamento? Enfim, pesa como questionáveis as tentativas de retorno e foco nos lucros e vagas, vez que o local do assassinato permanece funcionando como se nada lá houvesse ocorrido.

Talvez João Alberto estivesse mais protegido na padaria do bairro, aquele estabelecimento sem segurança patrimonial violenta, usuária de uma prestação de serviço “no bico” e assassina. Talvez Beto ainda estivesse com seus amigos, com seus familiares, se ele não tivesse ido fazer suas compras. Talvez Beto estivesse vivo, exercendo sua responsabilidade como alabê e sendo um mensageiro da ancestralidade de matriz africana, se este não fosse um país onde a morte de negros e negras foi naturalizada.

É fundamental que o repúdio contra o racismo tenha um aspecto de perenidade, que não se esvaia poucos depois que uma vida seja suprimida

A nossa consciência e a radicalidade da nossa indignação é que vai dizer quantos Betos viverão. João Alberto Freitas já não está conosco, já fomos privados de sua vida. Nosso compromisso é manter nossa indignação mediante a brutalidade dos assassinatos de pessoas negras para além de eventos episódicos. É fundamental que o repúdio contra o racismo tenha um aspecto de perenidade, que não se esvaia poucos dias depois que uma vida seja suprimida de maneira tão atroz.

É hora de dizer basta.

É hora de radicalizar o antirracismo.

*O texto da coluna deste mês foi elaborado em conjunto com a historiadora Wania Sant’Anna

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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