Ilaria Gaspari: ‘A sabedoria é uma forma de cura’
Em um momento de mudanças em sua vida, a jovem filósofa italiana resolveu seguir os ensinamentos da Grécia Antiga para encontrar a felicidade; ela compartilha com Gama um pouco da experiência, registrada em seu novo livro
Tropeçando entre as caixas da mudança de um apartamento outrora compartilhado, depois do término de um relacionamento, a italiana Ilaria Gaspari foi obrigada a revisitar as prateleiras mais altas das estantes quando todo o resto já estava empacotado. Ali, redescobriu os livros de filosofia antiga que há muito não folheava e, numa epifania um tanto peculiar, viu neles uma oportunidade de recomeço: seguir os ensinamentos de mais de dois mil anos das escolas gregas parecia uma boa forma de reencontrar a felicidade.
Algum tempo depois, a filósofa formada pela Escola Normal Superior de Pisa e doutora pela Universidade de Paris I Panthéon decidiu colocar o experimento em prática. Durante seis semanas, ela viveu de acordo com os preceitos de diferentes vertentes de pensamento da Grécia Antiga, mantendo um diário da experiência que depois virou o livro “Lições de Felicidade – Exercícios Filosóficos para o Bom Uso da Vida”, recém-lançado no Brasil pela editora Âyiné. Misto de ensaio e caderno de memórias, com pequenas passagens literárias, a obra descreve os desafios e os questionamentos surgidos do choque entre as antigas doutrinas e a já cristalizada vida contemporânea.
Pitágoras, Parmênides, Epiteto, Pirro, Epicuro e Diógenes foram os mestres eleitos por Gaspari para a empreitada. “Tentei escolher apenas escolas menores e menos conhecidas, mas o mais importante era que cada uma delas cuidasse de um aspecto da minha vida”, conta. Assim, ela investigou temas como as regras e a liberdade, o tempo e as dúvidas, a esperança e os desejos. “Segui uma progressão que começava com as regras [na semana pitagórica] e terminava com a liberdade [na semana cínica, de Diógenes]. Isso foi muito libertador. Se eu tivesse chegado à liberdade cínica sem ter seguido as regras de Pitágoras teria sido muito mais difícil, porque percebi que a liberdade também requer certa disciplina.”
E a felicidade — afinal, tudo começou por causa dela — estaria justamente nessa trajetória. Embora, aos 34 anos, colecione um um extenso currículo acadêmico e outros dois livros publicados +, Gaspari se considera uma grande procrastinadora, com aquela tendência de adiar tudo e uma dificuldade de concluir as tarefas. Sua maior descoberta com o experimento, no entanto, foi que a felicidade está muito menos nos inalcançáveis objetivos do que nas viagens tortuosas que fazemos até eles. “Para os gregos, a felicidade não está no fim do caminho, mas é algo que você legitima enquanto está caminhando”, diz.
A seguir, a filósofa conversa com Gama sobre a experiência que deu origem ao livro e sobre a busca, antiga e contemporânea, da tão almejada felicidade.
Temos uma ideia de felicidade momentânea, mas na verdade não temos uma boa relação com o momento presente
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G |Por que você achou que a filosofia ajudaria a colocar a vida de volta nos eixos?
Ilaria Gaspari |Escolhi a filosofia por algumas razões. A primeira é mais pragmática: foi o que eu estudei, e estudei filosofia porque achava que isso daria alguma disciplina aos meus pensamentos. A segunda razão é mais universal: a filosofia da Grécia Antiga lida com alguns problemas que são parecidos com os que a gente tem hoje, e faz isso usando uma linguagem simples e de uma forma muito harmoniosa entre a prática e a teoria. Pensei que talvez isso pudesse ser útil. Outro motivo foi ter lido “Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga”, do filósofo Pierre Hadot, em que ele defende que as escolas antigas eram lugares que as pessoas frequentavam para aprender a viver. Então, eu tentei fazer isso.
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G |Você diz que os filósofos da Grécia Antiga lidam com problemas parecidos com os de hoje, mas parece que eles tinham uma ideia de felicidade muito diferente da nossa. O que podemos aprender com eles?
I.G. |É verdade que a ideia de felicidade dos gregos antigos é muito diferente da nossa, e é precisamente por isso que devemos olhar para eles. Nós limitamos a felicidade de um modo muito performativo, é uma ideia muito fotogênica: sentimos que deveríamos ser felizes e mostrar que estamos felizes, e fazemos uma ligação muito forte entre a felicidade e o momento — um momento em que tudo negativo está longe, em que não temos preocupações, não temos culpas que nos assombram. Isso, por um lado, faz com que sejamos obcecados pela felicidade e, por outro, com que seja muito difícil agarrá-la. Os gregos eram muito mais sábios do que nós. Eles tinham uma noção mais inclusiva de felicidade, porque a veem como um caminho que você traça para ir de um ponto ao outro. Você faz sua própria rota e essa rota é a felicidade. Essa ideia é muito libertadora.
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G |Isso me fez pensar que a nossa ideia de felicidade tem muito a ver com o tempo: seríamos felizes se tivéssemos mais tempo, fomos felizes no passado, seremos felizes no futuro. Qual sua opinião?
I.G. |Um dos problemas do nosso atual conceito de felicidade é que nós só nos projetamos felizes no futuro. Às vezes no passado, mas é diferente. Estamos limitados a fazer coisas e mais coisas, sempre pensando em quando terminaremos. O segundo capítulo do livro é sobre o tempo, e foi muito difícil escrevê-lo, porque eu descobri o quanto estava atrelada a essa ideia de futuro e de que eu deveria capitalizar todo o meu tempo para acessar um momento que nunca chega. Esse é o problema: temos uma ideia de felicidade momentânea, mas na verdade não temos uma boa relação com o momento presente. E nisso os gregos são grandes mestres. Eles não têm apenas a ideia cronológica da passagem do tempo, chamada chronos — que é a única que nós temos —, mas também uma ideia do tempo em um sentido qualitativo, o kairós. Kairós é o momento. Poderíamos traduzir como “ocasião”, mas essa palavra dá uma sensação de que precisamos capturá-la. No kairós não há essa urgência, porque o único fato que está lá é você, você é capturado. [Entender isso] é bem importante para a construção de um caminho de felicidade. Acho que 2020 nos ensinou algo sobre isso porque despedaçou nossa ideia de futuro, e agora o desafio é encontrar nosso lugar neste presente, o que é muito difícil, mas não é algo que deveríamos rejeitar, porque estamos sendo chamados para responder [essa questão].
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G |Parece que estamos presos a uma mentalidade muito diferente da do “kairós”. Que desafios enfrentou ao seguir a filosofia grega antiga no século 21?
I.G. |Isso é verdade. Eu me confrontei com muitos limites da minha percepção. A coisa mais impressionante é que todos pensamos ser muito originais e únicos. Cada um de nós experiencia o mundo de dentro para fora, então é difícil pensar em nós mesmos apenas como mais um entre todos os outros. E o livro me obrigou a fazer exatamente esse exercício. Porque eu pensava: sou muito original, estou fazendo esse experimento com os gregos antigos no século 21 — o que, de fato, é estranho —, mas descobri que eu era convencional em muitos aspectos. Estava seguindo as coisas que as pessoas faziam, pensando em coisas só porque todo mundo ao meu redor também pensava. Eu achava que determinadas coisas eram importantes só porque elas eram importantes para os outros. Descobrir isso foi horrível, mas também foi ótimo, porque eu me libertei de algumas condições que tinha aceitado sem ler, sem estar ciente do quanto a sociedade condicionava minhas ideias. Quando comecei a escrever o livro, meu coração ainda estava partido e, quando temos um coração partido, ligamos a esse sentimento muitos outros — amargura, desilusão, abandono. E essa amargura não vinha do meu coração partido, vinha do mundo exterior dizendo “por que vocês terminaram? Vocês eram um casal tão legal!”. Escrevendo o livro, eu questionei isso pela primeira vez.
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G |Durante o experimento, você encarou a filosofia como uma forma de cura?
I.G. |A psicologia nasceu da filosofia. A ideia de analisar alguém é algo bem antigo da filosofia, e as escolas gregas com as quais eu estava lidando foram por muito tempo destinadas a curar a alma dos homens. Epicuro diz que as falas de um filósofo são inúteis se não curam a alma humana. Existe uma longa tradição da filosofia como uma maneira de cuidar da alma de alguém: no começo, era muito prática e teórica ao mesmo tempo, como um tipo de sabedoria, e a sabedoria é uma forma de cura. Eu fiquei muito atraída pela ideia de tentar não me curar, mas me educar para esse tipo de sabedoria — e não estava muito certa do resultado, não sabia aonde isso iria me levar. Pensei muito em encontrar uma forma de fazer perguntas a mim mesma que não seriam confortáveis do jeito usual. Nem sempre temos as respostas, mas apenas tentar fazer perguntas de um jeito diferente, sob outra perspectiva, é algo que nos cura de alguma forma.
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G |Você acredita que a filosofia pode nos ajudar em tempos de incerteza, como agora?
I.G. |Eu me fiz essa pergunta muitas, muitas vezes em 2020. Acredito que a filosofia nos ajuda a lidar com a complexidade do mundo, de nós mesmos e dos outros. Nós definitivamente precisamos disso agora, porque é um momento muito difícil e, como eu estava dizendo sobre a felicidade, encontrar uma nova forma de pensar sobre conceitos que, de algum modo, nos perseguem ou são muito próximos de nós, é muito importante. Também acredito que na simplicidade das palavras dos gregos antigos nós podemos encontrar jeitos acessíveis de nos familiarizar com essa sabedoria. Esses filósofos estão falando com os seres humanos, estão falando sobre ser humano, e isso é universal.
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G |Você acha que qualquer um pode tentar um experimento como o que você fez?
I.G. |Acho que é factível. Algumas pessoas sentem que é muito difícil se aproximar da filosofia, e o que tento fazer é mostrar que a filosofia é interessante porque ela fala sobre você. Quando aprendemos uma língua morta, ela tem uma utilidade apenas intelectual: você estuda grego antigo para fazer suas traduções, mas não tem a ideia de algum dia falar essa língua. Quando você estuda uma língua viva, você estuda para se comunicar. Agora estamos falando em inglês, e eu não falava inglês há muito tempo, então estou cometendo erros, às vezes sinto que não encontro a palavra certa, mas nós somos capazes de nos comunicar usando essa língua, e eu não ligo se cometo erros. Podemos fazer algo semelhante [ao estudo de línguas vivas] com a filosofia: algumas vezes não temos a palavra certa, esquecemos coisas. Mas ok, podemos usar isso adaptando a nós mesmos, para comunicar com a nossa vida. Então, sim, todo mundo pode fazer um experimento como esse.
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G |E como foi, para uma acadêmica, ser a cientista e o objeto da pesquisa ao mesmo tempo?
I.G. |Foi muito louco. Se eu tivesse alguém para ser meu objeto, eu analisaria a partir do exterior, mas seria impossível. O que eu estava esperando eram as reações interiores: eu queria ter insights na parte emocional do pensamento, [entender] como as emoções mudam se você muda a maneira de pensar. E me coloquei em uma situação muito complicada, porque sou muito procrastinadora e isso era algo que só dependia de mim. De alguma forma, só porque eu estava muito curiosa para saber o que mudaria, a curiosidade foi mais forte do que a minha preguiça. Mas o mais importante foi a minha mudança interior, porque alguns padrões de pensamento, formas de lidar com problemas que aprendi, são coisas que ainda faço. O livro teve um impacto muito grande na minha vida. Foi como se apaixonar por alguém de novo — o que, aliás, acabou acontecendo!
- Lições de Felicidade
- Ilaria Gaspari
- Âyiné
- 105 páginas
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