De carro ao Uruguai Essa foi a viagem feita por Tato Coutinho há um ano. Na série de quatro textos, ele lembra como tudo começava com uma boa história e terminava com uma vontade danada de fazer tudo outra vez
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Em família
Ao partir ao Uruguai abraçamos com fervor dois célebres clichês sobre viagem: o que diz que o destino é o próprio caminho e aquele, ainda não tão bem elaborado, que reza que o olhar do outro ajuda a renovar o nosso próprio olhar. Até que Pedro viajasse sem nós, nunca viajamos sem ele. Desde o seu nascimento, aprendemos a combinar destinos e processos como num filme da Pixar, em que há beleza e diversão para adultos e crianças. Nunca deixamos de fazer nada por causa dele – muito pelo contrário, devo dizer. Ao estimulá-lo a cultivar diários, com o tempo descobrimos em seus desenhos e anotações que só por causa dele vimos coisas pelo mundo que não teríamos visto se estivéssemos sós, com o perdão do segundo clichê.
No laboratório em que o confinamento de um carro se transforma numa longa estrada nos demos conta que o amadurecimento dos filhos não leva embora o que amamos neles quando crianças. Num trecho da viagem já bem ao sul do Rio Grande do Sul, eu e Pedro comentávamos sobre os rebanhos e a pecuária extensiva quando ele me perguntou se eu tinha visto.
Ele seguirá viajando conosco e seguiremos viajando com ele onde quer que a gente vá na companhia seja lá de quem for
– O quê?
Pensei nas horrorosas coberturas de pinus, de árvores equidistantes crescidas na mesma velocidade, com sulcos na mancha verde uniforme como os da manteiga gelada raspada por uma faca. Não era. Pensei em como as montanhas tinham desaparecido ao longo do caminho. Também não era.
– Uma ema!
O entusiasmo com aquela ema no meio de quatro ou cinco cabeças de gado numa ondulação à beira da estrada era o mesmo de quando viu um filhote de lhama pendurado numa mamadeira no colo de uma chola em Cuzco, no Peru – dez anos atrás. Talvez esta tenha sido a última viagem que faremos sozinhos com ele, mas aquela ema de algum jeito nos fez perceber que ele seguirá viajando conosco e seguiremos viajando com ele onde quer que a gente vá na companhia seja lá de quem for. Parece uma maldição, eu sei, mas é só hereditariedade e amor.
Embarcado pelo avô em “O Continente”, o primeiro volume da saga de “O Tempo e o Vento”, Pedro pautaria a viagem com sua conversa homeopática, entre a eloquência da mãe e o meu minimalismo. Do banco de trás, exerceria seu poder moderador sobre pais com uma leve tendência a divergir sobre coisas desimportantes – os malefícios de ler com o carro em movimento, a legalidade de fazer xixi à beira da estrada na falta de um banheiro limpo, abastecer antes ou depois de o ponteiro entrar na reserva. Derivamos os três sobre os jesuítas, a Guerra Cisplatina, a diferença de som do duplo L no espanhol da Espanha e no da América do Sul, os freios e contrapesos do estado de direito, o menor número de postos de gasolina quanto mais ao sul as estradas, o avanço da fronteira agrícola sobre a floresta, a topografia nacional, a contribuição dos rebanhos para o aquecimento global – e evidentemente sobre nós à cavalo sobre tantos assunto.
Sem sinal na grande maioria do tempo em deslocamento, existimos alheios aos trending topics
Nada disso seria possível não fosse a imperfeita cobertura de nossa telefonia móvel. Sem sinal na grande maioria do tempo em deslocamento, existimos alheios aos trending topics das redes sociais e às últimas polêmicas relacionadas ao VAR e à Vaza Jato. Com os celulares involuídos a tocador de mp3, uma playlist em particular forneceria a trilha incidental para os pequenos acontecimentos em que as relações se fortalecem – os clássicos de Belchior, baixados do Spotify. Meu entusiasmo de karaokê em “Caso Comum de Trânsito“, a voz bonita de Maria naquela parte em que “ainda somos os mesmos e vivemos/ ainda somos os mesmos e vivemos”, o canto desapercebido de Pedro ao dividir o cérebro entre a leitura de Veríssimo e a circulação do medo pelo “Pequeno Mapa do Tempo” – uma longa estrada em boa companhia tem esse efeito meditativo, neutralizador de superegos.
Toda família deveria se aventurar pelo menos uma vez na vida por uma longa viagem pelo interior – se de si, só o destino e a trilha sonora o dirão.
TATO COUTINHO é botafoguense e jornalista, com passagens pela Editora Abril, TV Cultura de São Paulo e Editora Trip. Atualmente trabalha no núcleo de linguagem da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty *A imagem que ilustra a investigação é a casinha na calle De San Pedro, a poucos passos do farol de Colônia de Sacramento, na ponta em que a cidade avança sobre o rio da Prata. O desenho de Pedro – o Pedro do Tato – é expressão da substância delicada que tornam únicas as viagens que fazemos em companhia dos filhos