Viajar em família de carro ao Uruguai — Gama Revista
© Pedro Lins

De carro ao Uruguai Essa foi a viagem feita por Tato Coutinho há um ano. Na série de quatro textos, ele lembra como tudo começava com uma boa história e terminava com uma vontade danada de fazer tudo outra vez

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Ao Uruguai

Tato Coutinho 04 de Agosto de 2020

Da janela do carro, pelos menos dois aspectos se tornam evidentes na mudança de um jeito de ser da paisagem a caminho do Uruguai:

  1. De São Paulo à Curitiba, pelas curvas de nível e da estrada, e depois ao centro-oeste do Paraná, de onde desceríamos ao Rio Grande do Sul a partir de Lapa, a altitude oscila nervosamente com a inconstância dos planaltos da região. A partir de São Miguel das Missões, os vincos do relevo parecem vir sendo passados à ferro até que os volumes se tranquilizem nas coxilhas, as suaves ondulações dos pampas gaúchos e uruguaios.
  2. Partindo de São Paulo, a beira da estrada é um caos, com o território em disputa por propriedades de todos os tipos, até quase o acostamento – postos de gasolina e da polícia, restaurantes e lanchonetes, plantas de fábricas grandes e pequenas, sítios e fazendas, escolas e igrejas, os outdoors gritando em todas as direções. Já no interior gaúcho e depois, no Uruguai, um enorme dedo é posto frente aos lábios e “shhhhh!” – as grandes extensões uniformes se impõem e o olhar passa a descansar na calmaria verde clara manchada aqui e ali por um laguinho eventual, rebanhos em que as reses parecem ir crescendo de tamanho, um ou outro capão nativo e aquelas horrorosas coberturas de pinus e eucaliptos, como melanomas na campina.

A mudança em curso pelas janelas me lembraria a observação de uma amiga uruguaia ao me enviar por celular seu precioso guia sobre Montevidéu, escrito para os viajantes interessados na cidade que a interessa – tranquila e modesta. Estava ainda na imigração em Rivera, validando o seguro que garantiria a fubica em território estrangeiro, quando recebi o anexo e sua mensagem: “a chegada [ao Uruguai] é muito bonita. tudo parece aquietar-se aos poucos”.

O vento que antecedeu nossa chegada ao Uruguai era outro, o de Érico Veríssimo

Ao descer pela Ruta 5, sempre ao sul, a desaceleração sugerida por Gabriela era sublinhada pela drástica redução do tráfego nas estradas – na média, bem melhores que as brasileiras em que rodamos – e pela mansidão das enormes pás das centenas de aerogeradores pelo caminho. Feito uns bosques esquisitos, os mais de 30 parques eólicos em funcionamento no Uruguai garantem mais de um terço (36%) de toda eletricidade produzida no país, colocando-o em segundo lugar na lista dos maiores geradores de energia a partir do vento (e do sol), atrás apenas da Dinamarca (51%) – o Brasil nem aparece na foto no último relatório da REN 21, organização não governamental de pesquisa e fomento para políticas no setor de energias renováveis.

O vento que antecedeu nossa chegada ao Uruguai era outro, o de Érico Veríssimo. Na trilha de “O Continente”, tomos 1 e 2 da saga a disputar com a paisagem a atenção de Pedro, planejamos duas paradas ainda no Brasil. A primeira delas em Lapa, pequena cidade ainda no alto do planalto, no Paraná, palco de sangrenta batalha da Revolução Federalista (1893-1895), em que os maragatos pretendiam libertar o estado do Rio Grande do Sul da recém-proclamada República. Os rebeldes cercariam a cidade, impondo aos legalistas uma amarga derrota, devolvida um mês depois pelas forças de um furioso Floriano Peixoto. O clima de ódio mútuo, fio condutor das primeiras 600 e tantas páginas de “O Tempo e o Vento”, ganha tintas triunfais no pequeno Museu Histórico General Carneiro, nomeado em homenagem ao herói oficial da resistência aos separatistas. Muito simples, mas valoroso, montado na casa onde funcionou a principal enfermaria durante o cerco à cidade, o espaço reconstitui com graça o leito de morte do militar, com a exibição de objetos pessoais, como o seu diário de campo. Impossível deixar o lugar sem imaginar como seria a representação se a administração do museu estivesse a cargo de alguém com maior apreço pela história dos derrotados.

A importância das derrotas se apresenta com maior dignidade em São Miguel das Missões, nossa segunda parada ainda no Brasil, já no Rio Grande do Sul. O brilho de suas ruínas já nos havia sido antecipada também por Veríssimo, com a história do índio Pedro Missioneiro, pai do filho de Ana Terra, força geradora de sua longa saga. A descrição que faz da coloração avermelhada dos restos da igreja de São Miguel Arcanjo, construída entre 1735 e 1750, tingiria nosso espanto ao visitar o sítio arqueológico, elevado a patrimônio da humanidade pela Unesco em 1983. Mesmo para um ateu, a grandiosidade que se apresenta ali faz pensar em algo maior do que a simbiose entre a engenhosidade originária dos índios guarani com a missão catequizadora dos jesuítas espanhóis – como o exemplo da convivência possível entre tradições filosóficas tão diferentes, resultando num modo de vida com propósitos socializantes no que diz respeito aos meios de produção material, cultural e espiritual, só interrompida pela devastação promovida por interesses mercantis. Vai saber o que hoje existiria ali não tivessem portugueses e espanhóis se aliado para combater as Guerras Guaraníticas (1753-1756), dizimando os povos originários e repartindo as terras entre suas coroas. Essa história é narrada todas as noites, frente ao que sobrou da igreja, no chamado Espetáculo de Som e Luz, nas vozes de Fernanda Montenegro e Lima Duarte, entre outras. Tem o seu valor.

Então o Uruguai. Ao cruzar a fronteira por Santana do Livramento/Rivera, rumamos para Colônia de Sacramento, com um pouso em Carmelo. Não tivéssemos presenciado ali um uniformizado racha entre crianças – que beleza é o futebol – numa várzea do Prata, a cidade constaria em nossas anotações apenas como um pernoite mais barato do que em nosso primeiro verdadeiro destino uruguaio. Como é bonito o conjunto arquitetônico da ponta onde ficam a Basílica do Santíssimo Sacramento e o farol de Colônia. Mesmo que a fila para a subida o desencoraje, não deixe de ir em frente para ver tudo lá de cima – as telhas portuguesas, o traçado do vilarejo, o rio oceano. Como nos arrependemos de não pagar um pouco mais para passar a noite ali.

Mesmo na maior cidade do país, a quietude é notável. A arquitetura não parece ser empurrada para cima

De lá partimos para Montevidéu. Mesmo na maior cidade do país, concentrando 1,3 milhão de seus 3,5 milhões de habitantes, a quietude é notável. A arquitetura não parece ser empurrada para cima, com uma ocupação muito bonita de casas e prédios baixos digníssimos em seus 50 ou 60 anos, ecléticos e modernos, os mais velhos, do começo do século passado, muito bem conservados com seus pórticos e platibandas trabalhadas em alto relevo. Do pequeno estúdio (Airbnb) em Punta Carretas, sossegado bairro residencial de onde exploramos a cidade, partimos para os velhos combinados – o mercado e o estádio de futebol. No Mercado del Puerto fomos mais felizes fora do que dentro, onde comemos uma plancha de frutos do mar que parecia ter vindo do freezer, não do mar. No giro à sua volta, para ver o prédio, cruzamos com o pixo mais lindo dos últimos tempos, entre os muitos com que a cidade espalha sua vocação progressista – “a única minoria perigosa são os ricos”. Para o futebol, nos desdobraríamos em dois dias. No sábado fomos a Jardines del Hipódromo, o estádio do pequeno Danúbio, para um jogo contra o gigante Nacional, clube que manda no futebol uruguaio ao lado do Peñarol, do el negro jefe. Partida jogada às pressas das 15h às 17h porque o estádio – que belleza es el fútbol – não tinha iluminação. No domingo fomos ao Centenário, o Maracanã de Montevidéu, onde a Celeste Olímpica conquistou o primeiro de seus dois mundiais, em 1930 – o outro é aquele lá, você sabe. De simplicidade comovente, o museu local exibe orgulhoso suas duas réplicas oficiais da velha Jules Rimet. Miúdas e douradas, são de chorar ao lembrar que a original, com a inscrição de todos os países que a levantaram, trazida “em definitivo” ao Brasil com a conquista do tricampeonato, em 1970, foi roubada 13 anos depois para ter o seu peso em ouro, derretido, vendido por uma ninharia.

Começando a voltar, já com saudade da maravilhosa feira de Tristan Narvaja, aos domingos, mercado de pulgas, velhas revistas de futebol, bombas e cuias de chimarrão e o que mais você imaginar, nos encaminhamos a Cabo Polonio – playa y naturaleza, lembra? Aqui cometeríamos o segundo erro de nossa viagem. Em vez de nos planejarmos para dormir lá, pousamos em La Paloma, no final do dia, depois de uma parada nas cercanias de Punta del Este, para uma visita à casa-museu de Carlos Paes Villaró (1923-2014), uma cruza de Caribé com Picasso; e outra em Atlântida, para conhecer a Igreja do Cristo Obreiro, de Eladio Dieste (1917-2000), misto de Gaudi e Niemeyer – das coisas que não veríamos não fosse pelo Pedro, tijolo sendo moldado na olaria da FAU-USP. Na manhã seguinte, acordamos cedinho para pegar o primeiro caminhão-jardineira do Parque Nacional Cabo Polonio – não há outro jeito de chegar ao vilarejo na área de proteção ambiental bastante isolada pela falta de estradas. No dia em que chegamos, uma terça-feira muito fria, havia muitos mais lobos-marinhos que humanos. Depois de escalarmos o farol, de olho naquela ponta pedregosa desde 1811, almoçamos no único restaurante aberto, La Golosa – uma merluza que jamais conhecera um freezer ao molho de uns camarõezinhos vermelhos e um espaguete com frutos do mar de lamber o fundo do prato. Iríamos embora chateados de perder a chance de dormir ali para apontar estrelas no céu.

Como convenceríamos aquele adulto no banco de trás a viajar outra vez com os pais?

Na volta a São Paulo, depois de escalas planejadas em Porto Alegre e Florianópolis, onde dormimos cinco noites para ver as famílias gaúcha e catarinense, acrescentaríamos no improviso a parada nos cânions na divisa entre um estado e outro, próximo a Cambará do Sul. Não conseguimos evitar as piadas com o buraco em que o Brasil se metera – mas ali havia muita beleza. De novo na estrada, a vida voltando a se desorganizar pela janela naquele trecho tedioso desde a subida da serra de Curitiba, a partir de Joinville, dois novos assuntos entrariam na pauta de nossas conversas, Pedro ferrado no sono, encerrado “O Continente”: 1. sentiríamos falta da fubica quando trocarmos de carro no final do ano? 2. como convenceríamos aquele adulto no banco de trás a viajar outra vez com os pais?

Impossível não lembrar de Belchior, que passou um bom tempo no Uruguai naquele período em que desapareceu do mapa. Canta aí, Maria.

– Shhhhh… Vai acordar o menino.

Tato Coutinho é botafoguense e jornalista, com passagens pela Editora Abril, TV Cultura de São Paulo e Editora Trip. Atualmente trabalha no núcleo de linguagem da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty *A imagem que ilustra a investigação é a casinha na calle De San Pedro, a poucos passos do farol de Colônia de Sacramento, na ponta em que a cidade avança sobre o rio da Prata. O desenho de Pedro – o Pedro do Tato – é expressão da substância delicada que tornam únicas as viagens que fazemos em companhia dos filhos

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