Yotam Ottolenghi, o encantador de vegetais — Gama Revista
Comida e bebida

O encantador de vegetais

Autor de receitas em que sabores e texturas se combinam à perfeição e de forma exuberante, Yotam Ottolenghi lança um livro de pratos simples — apenas no modo de fazer

Isabelle Moreira Lima 04 de Dezembro de 2020
Neale Haynes / Divulgação

Não sei se fui influenciada pelo título do livro, mas em menos de uma semana bati um recorde pessoal e já havia atingido a marca de quatro receitas feitas de “Simples”, livro do encantador de vegetais Yotam Ottolenghi que acaba de chegar ao Brasil pela Companhia de Mesa, selo de gastronomia da Companhia das Letras. Fui do frango com influência asiática (shoyu, gengibre, kirin e coentro) e maple syrup (por que?) à couve-flor do império britânico (ovos cozidos, curry e sementes crocantes de coentro), passando por cenouras com canela, iogurte grego e mais coentro; e um outro frango, este à Marbella (azeitona, alcaparra e tâmara em vez de ameixa, com um toque de xarope de romã). Todos irreparáveis; todos, uma experiência visual, de sabor e de textura complexa como já é de costume em seus pratos.

Veja também: Receitas simples (mas exuberantes) de Ottolenghi

Se você conhece as receitas de Ottolenghi sabe que no parágrafo acima eu simplifiquei a lista de ingredientes e imagina que, na prática, não consegui usar tudo o que ele pedia. Deve estar achando também no mínimo curioso que o chef israelense-britânico de 51 anos tenha publicado um livro com esse título. Afinal, sua fama é de ser o oposto disso e sua comida é sempre exuberante, complexa, rica. Para se ter um a ideia, a revista New Yorker publicou no começo deste ano um texto de humor em que dá receitas cuja autoria é supostamente de Ottolenghi e que pedem, por exemplo, que se cante uma canção de ninar enquanto a massa do pão descansa, tamanho o nível de dificuldade de seus pratos.

Uma comida tem que ser dinâmica. Com azedo, doce, contraste, cor, textura, diferentes temperaturas

Ottolenghi riu da piada e, em entrevista a Gama, diz que talvez “Simples” tenha sido sua tentativa de escapar desse personagem. “Foi um jeito de provar que eu consigo não ser a pessoa dos 21 ingredientes e das 17 panelas e assadeiras sujas espalhadas pela cozinha depois que você termina de fazer o prato”, afirma ele, que já foi taxado de cosmopolita em demasia, elitista, perdulário. “Minha comida não é elitista porque eu não uso ingredientes caros e muitas vezes os vegetais são mais baratos que as proteínas animais. Peço ingredientes exóticos como zataar, mas isso você pode reusar mil vezes.”

Consigo não ser a pessoa dos 21 ingredientes e das 17 panelas e assadeiras sujas espalhadas pela cozinha

“Simples” nasceu de um pedido do jornal Guardian, no qual ele mantém uma coluna de receitas, de publicar uma seleção de pratos sazonais simples e rápidos. Ottolenghi achou a ideia absolutamente entediante, mas chegou a uma lista de dez pratos que fazia no dia a dia e que se adequariam ao pedido. “Nós subestimamos a palavra simples. Ela pode significar muitas coisas”, afirma. Pois é com base nos diferentes significados que o livro está organizado: há as receitas para quem quer gastar pouco tempo entre mercado e mesa; outras para os que gostam de ter o trabalho no dia anterior; outras que ficam longas horas no forno, o que dá um descanso ao cozinheiro. Todas as categorias são marcadas por pequenos ícones, assim como o tempo de preparo de cada receita. Há ainda as indicadas aos preguiçosos e as facílimas.

Havia ainda outro desafio a ser vencido por Ottolenghi para cumprir o desafio da simplicidade: a famigerada lista de ingredientes. No livro, entraram majoritariamente pratos feitos com até dez itens, a maioria deles comum a qualquer casa de família. A exceção são os chamados “ingredientes Ottolenghi” — como ele mesmo escreve no prefácio do livro mais uma vez em tom de piada, suas receitas pedem “uma passadinha no mercado do lado de casa para comprar leite, alho negro e sumagre”. (Se você está exclamando “sejá lá o que isso for”, eu já fiz a pesquisa e facilito aqui: um fruto seco moído comum à cozinha mediterrânea e usado para adicionar acidez e picância em saladas e marinadas para carnes.) Trata-se de uma lista de dez itens mais exóticos para se ter na despensa. Por experiência própria digo que uns são indispensáveis; outros podem ser substituídos.

Reino vegetal

Em um ano em que as pessoas ficaram em casa e foram mais à cozinha, “Simples” ganha nova relevância e significado por ajudar a transformar as refeições do dia a dia em algo mais diferente e especial. Assim, é um acerto sua publicação no Brasil só agora (no Reino Unido, foi lançado há dois anos). Mas mais que isso ele é afinado com nossos tempos pela proporção de vegetais (80%) e carnes (20%). “Não é exatamente intencional, mas é o jeito como gosto de comer; não sou vegetariano, mas amo vegetais. Mas é também uma mudança que todos nós precisamos fazer”, afirma.

Se você quer que se comam vegetais, não é esperto pregar a restrição. Mostrar  maravilhas feitas com eles é um caminho mais certeiro

Ottolenghi diz que não é um “radical”, mas um amante “pragmático” de legumes e verduras. “Se você quer que a pessoa coma vegetais, não é esperto pregar a restrição, isso pode alienar muita gente. Mas se você mostra todas as coisas maravilhosas que podem ser feitas com esses ingredientes vai ser muito mais fácil fazer com que as pessoas mudem sua alimentação. É uma abordagem mais realista.”

Leia os melhores momentos da entrevista a seguir.

  • G |Se você já tem um foco tão grande nos vegetais, por que não levanta essa bandeira?

    Yotam Ottolenghi |

    Minha agenda não é converter ninguém a nada, não está na minha natureza, eu não sou um educador, eu só amo celebrar a comida. É extremamente importante comer mais legumes porque os níveis de consumo de carne a que estamos acostumados são insustentáveis. Mas acredito que a saída é mostrar a virtude do mundo dos vegetais em vez de apontar o dedo e dizer o que se deve comer. Amo legumes porque vejo muito potencial. Carne sempre vai ser carne, mas uma couve-flor pode ser muitas coisas, a criatividade vai mais longe. Seria ingênuo de minha parte fazer isso, eu nem sou vegetariano.

  • G |O aquecimento global está mudando o jeito como você cozinha ou vê a comida?

    YO |

    A redução do consumo da carne é mais importante que nunca, então isso me afeta, mas eu já erguia a bandeira dos vegetais, sempre achei que são fantásticos.

  • G |Estamos próximos do momento em que serão protagonistas em restaurantes fora do nicho?

    YO |

    Há alguns anos chefs de restaurantes Michelin só estavam interessados em carne. Agora, amam fazer pratos vegetarianos. Já vejo isso acontecer no Reino Unido.

  • G |Você está especialmente apaixonado por couve-flor, cujo sucesso é destacado até em memes na internet, já foi um enamorado da berinjela. Quem será o próximo?

    YO |

    Couve-de-bruxelas é um grande exemplo. No norte da Europa e nos EUA, as pessoas amam ou odeiam, mas porque sempre foi malfeita. Se você cozinha em água, quando chega ao ponto certo de cocção dentro, fora já está horrível, cinza. Descobriu-se que se você parte ao meio e joga numa assadeira com azeite e dá uma tostada, fica crocante e adocicada. E aí se viu uma explosão de pratos com couve-de-bruxelas. Outro postulante é o aipo-rábano, um vegetal muito simples, de longa temporada e muito versátil. Que verdura ou legume você escolhe é a coisa menos importante, o que importa é como você o faz.

  • G |Seus pratos combinam muitos sabores e texturas. Como encontrar essa matemática perfeita?

    YO |

    A experiência de comer não deve ser uniforme, a comida não pode ter sempre a mesma sensação. Uma sopa processada, como uma comida de bebê, é para mim algo muito entediante. Por isso é que sempre uso algo doce ou apimentado. Nem toda mordida deve ser igual à anterior, o ideal é sempre ter uma surpresa. Eu brigo com meus filhos. Eles tem 5 e 7 e eu dou um bowl pra eles com iogurte e granola e eles misturam. Estragam a graça porque é muito melhor quando você pega um pouco de iogurte, macio, e a granola crocante. Se você mistura, fica como cimento. Uma comida tem que ser dinâmica. Com azedo, doce, contraste, cor, textura, diferentes temperaturas.

  • G |Você ainda cozinha muito?

    YO |

    Não tanto em casa. Meu marido Karl cozinha mais. Mas no lockdown eu fiz muita coisa, especialmente pratos para agradar meus filhos. Fiz muitos pratos com carboidrato, arrozes, macarrões, desses que se faz em uma única panela, para que eles sentissem que comiam o que gostavam. Um deles está em “Simples”, um arroz com tomate confit e caldo.

  • G |Acha que a quarentena mudou o modo como as pessoas cozinham e usam seus livros?

    YO |

    Acho que se desafiaram mais, assaram pães, fizeram seu próprio macarrão. Havia um senso de aproveitar e honrar os ingredientes, desperdiçar menos e trabalhar com o que se tem porque, no começo, nem sabíamos se conseguiríamos comprar as coisas. Eu me fiz fazendo muito pudim de pão e rabanada.

  • G |Simples vai nessa direção. Pode falar do seu novo livro, “Flavour”?

    YO |

    É meu primeiro de vegetais estritamente em cinco anos, desde “Comida de Verdade” (Plenty More). Eu queria contar o que há de novo desse mundo e pedi para minha colega Ixta Belfrage, que é meio brasileira, meio mexicana e morou anos na Itália, me ajudar. Sempre há espaço para vegetais se tem uma nova perspectiva. E ela trouxe uma coisa fusion muito boa, combinações fantásticas.

  • G |É seu oitavo livro, como faz para não se repetir?

    YO |

    Nos últimos anos, todos os meus livros são colaborações. É assim que a cozinha de testes funciona, com duas, três pessoas cozinhando e todos se influenciam. E eu sinto que sou o padrinho mas as receitas vêm de todos.

  • G |É por isso que suas receitas começaram muito mediterrâneas e agora estão mais “globalizadas”?

    YO |

    Eu sempre tento pegar sabores de onde quer que eu vá, seja o Norte da África, o sul do mediterraneo ou da Ásia. Nosso chef-diretor é sul-africano e passou muito tempo na Tailândia. Ele faz coisas muito divertidas no que diz respeito ao cruzamento cultural que traz ótimas surpresas.

  • G |Quando uma receita está pronta?

    YO |

    Ela pode ser testada pelo menos 3 vezes, mas pode ir até 12 vezes quando é difícil. Sai da cozinha de testes e vai para o lar de uma pessoa que retesta. Minha maior agonia da vida é quando elas não funcionam e a pessoa acha todos os ingredientes, passa por todas as etapas, e chega a um desastre.

  • G |A motivação da escolha da comida pode vir de diferentes naturezas: da funcionalidade, da origem, da ética, do prazer. Como você definiria a sua relação com a comida?

    YO |

    Para mim, a comida tem a ver com a sensorialidade, os sentidos têm que ser despertados. A coisa mais importante é que a receita seja atraente, deliciosa e traga felicidade. Não estou dizendo que o que vem antes não importa. A fonte dos ingredientes ou como chegam à mesa, como foi a química, a ética do tratamento animal e da agricultura. Também importa o posicionamento cultural e sociológico da comida em nossos tempos, as questões que têm a ver com apropriação de uma receita. O que acontece quando um prato viaja de algum lugar onde é tradicional e vai para outros lugares.

  • G |Você acredita que faz isso quando usa um ingrediente tradicional de uma região?

    YO |

    Nós sempre o fizemos como raça humana, sempre mudamos as coisas de lugar, ingredientes, ideias, receitas. Não há nada novo aí. O que fazemos hoje é que essas jornadas elas são muito imediatas. Você pega o telefone ou digita algo no computador e consegue algo de outro lado do planeta. O risco é esquecer de onde as coisas vêm. É muito importante contar as histórias, se eu tenho a fonte da comida ou de uma receita, falo de onde ela vem.

Produto

  • Simples
  • Yotam Ottolenghi
  • Companhia de Mesa
  • 320 páginas

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