Ser preto no Brasil Uma série de quatro textos do jornalista Pedro Borges, co-criador da agência de notícias Alma Preta, sobre as barreiras de crescer como jovem negro no país, o processo de quebrar estereótipos, o amor pela profissão, pelo movimento e a celebração daqueles que vieram antes
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Os amores de ser preto no Brasil
“Tio, quais as escolas de samba mais pretas e tradicionais de São Paulo?”. “Pedrinho, tem a escola X, a Y, tem aquela outra que não pode ser desconsiderada, e tem o Camisa. Mas o Camisa é o Camisa”. Lembro até hoje do meu tio, quem muito admiro, me contando isso. Lembro também, durante uma discussão, um outro primo me explicando: “Pedro, sabe qual é a diferença do samba da escola X e do Camisa? Se quebrar o instrumento na escola X, os outros mandam comprar. No Camisa, se improvisa e o samba continua”.
Meus olhos brilham até hoje quando lembro disso.
Lá em casa, a minha família é dividida em duas escolas de samba, e uma delas é o Camisa Verde e Branco, a agremiação mais tradicional da cidade de São Paulo. O Carnaval, que já foi uma festa bem preta, viu o branco entrar, dominar, e as escolas tradicionais perderam um pouco de espaço. O Camisa é uma delas.
O que não dá para apagar é a história e a comunidade. O Camisa é uma das escolas de samba em São Paulo com a trajetória mais linda e é uma agremiação cuja principal característica é o marcador racial. Como se fala lá em casa, “é escola de negrão”.
Quando vou à quadra da escola, em especial quando tem ensaio e a comunidade está presente, sinto uma energia única. É onde mais gosto de ser o que eu sou: preto
Quando vou à quadra da escola, em especial quando tem ensaio e a comunidade está presente, sinto uma energia única. Quando estou desanimado, triste com algo, é para lá que preciso ir para recarregar as energias e seguir em frente. Para resumir tudo, é onde mais gosto de ser o que eu sou: preto.
Ser preto, ter o cabelo black, é uma partilha comum naquele lugar. E a comunidade traz para os ensaios e momentos de encontro uma experiência maravilhosa de ser quem somos. Ser negro não é motivo de dor, sofrimento, mas sim de paixão, beleza, afeto. Não precisa se anunciar a todo tempo, como nos faz a sociedade, o que somos, mesmo que nossa negritude talvez seja a principal marca deste lugar. Quando se diz, o “cara” ou a “mina”, e não se diz que a pessoa é branca, todos entendem que se trata de uma pessoa preta. Ali, o padrão é ser preto.
Durante as preparações para o Carnaval de 2020, presenciei uma cena linda. Vi um grupo de meninas e meninos, todos com aproximadamente 13 ou 16 anos, “paquerando”. Todos pretos, apaixonados, flertando e descobrindo a sexualidade e o afeto a partir dos nossos parâmetros de humanidade.
Espaços negros, como a escola de samba e os movimentos sociais, lugares que trazem para a centralidade o marcador racial, são essenciais para o desenvolvimento da autoestima e da identidade dessas pessoas.
Espaços negros, como a escola de samba e os movimentos sociais, são essenciais para o desenvolvimento da autoestima e da identidade dessas pessoas
Quando esses processos se desenvolveram e fortaleceram na minha vida, mudei totalmente. Se adolescente não me achava bonito ou inteligente, hoje me acho maravilhoso e esperto, as duas coisas inclusive até demais às vezes.
Mais do que isso, espaços como o Camisa Verde e Branco são fundamentais para a gente se amar de maneira coletiva. Sair com seu amigo, que sente aquela mesma energia da quadra, conversar, esticar o samba até a madruga é único. Adoro encontrar esses colegas e recordar sambas antigos, das escolas tradicionais, rir e celebrar.
Ser chamado de “preto”, “negrão”, “negão”, até “neguinho” lá é gostoso. O tom, o ambiente, o cenário e quem anuncia, outra pessoa preta, sinalizam o carinho e o afeto desse contato e dessa comunicação.
O Camisa e espaços pretos são também os locais de afeto. Encontrar a mulher que você ama e gosta, que também entende as suas questões, chamá-la de “pretinha”, ser chamado de “preto” ou “pretinho”, é bom demais. Quando me chamam assim, fico besta. Dar esses “roles” é bom demais.
O mundo é muito injusto, violento e cruel com a comunidade negra. Apesar disso, criamos nossos espaços de afeto e resistência, para celebrarmos quem somos, nossa história e vitórias. Apesar de todas as tretas, posso afirmar uma coisa: ser preto é uma delícia.
Pedro Borges é co-fundador e editor chefe da agência de jornalismo Alma Preta. Jornalista formado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), compõe a Rede de Jornalistas das Periferias, a Coalizão Negra por Direitos e a diretoria de comunicação da escola de samba Camisa Verde e Branco. Pedro também é colunista da Mídia Ninja e colaborador do Yahoo Notícias e Uol.