O perigo de ser preto no Brasil — Gama Revista
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Ser preto no Brasil Uma série de quatro textos do jornalista Pedro Borges, co-criador da agência de notícias Alma Preta, sobre as barreiras de crescer como jovem negro no país, o processo de quebrar estereótipos, o amor pela profissão, pelo movimento e a celebração daqueles que vieram antes

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O perigo de ser preto no Brasil

Pedro Borges 19 de Novembro de 2020

Difícil conhecer uma pessoa preta e/ou de periferia que não tenha um parente ou amigo que tenha sido assassinado no Brasil. Infelizmente as estatísticas são reais e a cada 23 minutos um amigo, irmão, filho, namorado, é executado no país.

O meu caso não é diferente. Ainda adolescente tive que lidar com o luto do meu primo, Felipe Franco, assassinado pela polícia militar. Felipe era um rapaz preto como vários das periferias de São Paulo. Criado na Brasilândia, zona norte da cidade, gostava do São Paulo Futebol Clube, de dar roles de final de semana e conversar com os amigos.

Quando meus pais me avisaram o que aconteceu, mal compreendi. “Como assim o Fê morreu?”. Ele infelizmente foi jovem, como vários vão, e eu sinto a sua falta. Não tive nem todo o tempo que queria para amá-lo.

Lembro dos meus pesadelos quando criança e a maioria deles passavam por ter medo de ‘ir preso’

Esse cenário de violência impacta inclusive a nossa psique, desde muito pequenos. Lembro dos meus pesadelos quando criança e a maioria deles passavam por ter medo de “ir preso”. Achava que qualquer “molecagem” que eu fizesse na rua poderia justificar a minha prisão. Um dia arremessei uma pedra, que quebrou uma janela, coisa que moleque arteiro, como eu era, costuma fazer. Naquele dia, tive certeza que seria preso.

Mal sabia na época que a cada três pessoas presas no Brasil, duas são negras, como mostrou o Anuário de Segurança Pública.

Eu não sabia, mas a minha mãe com certeza tinha e tem conhecimento disso. Desde pequeno e até os dias de hoje minha mãe briga comigo quando vou fazer algo na rua: “Pedro, está com o RG? Tem que andar na rua com documento”. Quando menino, eu achava preciosismo da parte dela, mas hoje entendo a preocupação. O documento era e é de alguma maneira a oportunidade de me apresentar para um policial, caso abordado.

Com ou sem documento, a gente sabe que causa medo na rua, desde cedo. É estranho explicar, mas quando ando na rua, sei que a pessoa que está na mesma calçada que eu, andando na minha frente, fica desconfortável em me ter atrás. É normal ver a mão ir ao bolso, para checar onde está a carteira, atravessar a rua, acelerar ou encurtar o passo. Tem vezes que o desconforto me incomoda tanto, que eu decido mudar o lado da calçada e seguir caminhando.

Quando ando na rua, sei que a pessoa que está na mesma calçada que eu, andando na minha frente, fica desconfortável em me ter atrás

Esse medo, inspirado pelo racismo, é o que nos coloca na mira do Estado e das polícias.

O primeiro enquadro que eu tomei na vida faz tempo, mas lembro de tudo com detalhes, infelizmente. Fui para a casa de um amigo, que depois me avisou que demoraria mais do que o normal para chegar a sua residência. Decidi então esperar em uma praça, perto da casa dele, quando um grupo de policiais me abordou, pediu para ver a minha mochila, e perguntou se eu sabia que havia venda de drogas naquela praça. Não, eu não sabia. Eu tinha 13 anos na época.

O pior, contudo, foi mais tarde, aos 19 anos. Essa é infelizmente a data com a maior letalidade sobre jovens negros no país. Lembro que estava em Bauru, no interior de São Paulo, onde morei por 5 anos para cursar jornalismo na Unesp, uma das principais universidades do país.

Um dia à noite fui para uma república, duas ou três quadras acima de onde eu morava, eu e o amigo mais branco que tenho. Dessa vez esqueci o que a minha mãe me dizia e não levei um documento com foto.

Quando voltávamos, uma viatura da polícia nos enquadrou. Tivemos que ficar de costas, com as mãos na nuca, e o policial logo pediu os documentos. Meu amigo apresentou o dele e eu disse que estava sem o meu. Foi ai que a abordagem, que já foi violenta, piorou. Meu amigo ficou encostado em um canto e todos os policiais vieram conversar comigo, pediram para eu tirar o tênis, para ver se havia droga comigo. Pediram para eu falar meu RG para checar se eu tinha alguma passagem pela polícia e ao final um dos policiais me disse: “Você sabe que não pode andar sem RG na rua. Você é…”.

Ele não precisou falar o que estava dito desde o início. Voltei para casa desolado, sem querer dialogar, nem mesmo com meu amigo, que havia ficado sem graça com toda a situação.

Se levar em consideração todas as ressalvas que essa ou as demais histórias da minha vida merecem, como ter acessado a universidade pública, ter a pele clara, a gente percebe como em qualquer situação a nossa presença é uma ameaça e a nossa vida está em risco. Infelizmente, para pessoas como eu, e meu primo Felipe Franco, a vida é uma aventura arriscada. Em muitos casos, o final é bastante triste.

Pedro Borges é co-fundador e editor chefe da agência de jornalismo Alma Preta. Jornalista formado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), compõe a Rede de Jornalistas das Periferias, a Coalizão Negra por Direitos e a diretoria de comunicação da escola de samba Camisa Verde e Branco. Pedro também é colunista da Mídia Ninja e colaborador do Yahoo Notícias e Uol.

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