Coluna da Letrux: Tranquilo, amiga — Gama Revista
COLUNA

Letrux

Tranquilo, amiga

Mulheres lésbicas e bis são violentadas nas ruas e dentro de casa, são muitas vezes esquecidas pelo Estado, são fetichizadas por homens e lutam diariamente pelas suas existências, que são múltiplas, complexas e subjetivas

12 de Agosto de 2020

Agosto é o mês da visibilidade lésbica. No dia 29 desse mês, em 1996, ocorreu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (antigo Senale, hoje Senalesbi). Além disso, também em agosto, porém no dia 19, de 1983, militantes lésbicas lideradas por Rosely Roth, acompanhadas de participantes de outros movimentos, ocuparam o Ferro’s Bar em São Paulo, que era frequentado majoritariamente por mulheres lésbicas ou bissexuais, em protesto contra agressões lesbofóbicas ocorridas algumas semanas antes. Sabia dessas histórias bem superficialmente e agradeço à Dri Azevedo, pesquisadore de pós doutorado, que deu uma bela aula sobre Histórias dos Movimentos LGBTQI+ No Brasil.

Não lembro a primeira vez que vi duas mulheres se beijando, mas lembro de ver o filme “Tomates Verdes Fritos” quando tinha 11 anos e nitidamente sentir que se tratava de uma história de amor e não só de amizade. Tive um pouco essa impressão em “Bagdá Café” também. E sempre uma dúvida sobre o porquê da falta de um beijo ou de uma cena mais sexual, como tantas vezes eu já tinha visto em filmes heterossexuais, sem cortes ou mistérios.

Durante meus anos de escola, sofri bullying. Meu cabelo, minha altura, minha magreza, minha existência era massacrada por alguns meninos. E em determinado momento, houve um bullying sobre minha sexualidade, que eu mesma até então nem sabia o que era. Não tinha muitas amizades, e vivia grudada com uma amiga, fazíamos tudo juntas. E quando passávamos no corredor, gritavam: “cola velcro!” A internet não existia, e não sabíamos para quem perguntar o que aquilo significava. Descobri alguns anos depois. Como também só fui descobrir alguns anos depois minha própria sexualidade.

Tenho dois irmão mais velhos e não fui criada como “a princesa caçulinha”, nunca houve uma defesa da irmãzinha, e sim um lugar de igualdade, que eu sempre quis e pelo qual lutei. Meu pai e minha mãe apesar de serem frutos de uma época mais machista, eram atentos aos meus combates por igualdade. E se meus irmãos faziam, eu fazia igual, e nada poderia ser diferente disso. Mas logo percebi algumas diferenças com meus irmãos quando meu ímpeto intelectual se aflorou na adolescência com a descoberta de livros que não eram os recomendados do colégio, filmes sem ser blockbuster e poesia. Entendi que aquela seria minha vida. Não pensei qual seria meu trabalho, não tive essa compreensão: “Ah se eu amo isso, vou trabalhar com isso”, não foi bem assim, até porque não há artistas na família. A única manifestação artística familiar de que me lembro era ver minha bisavó paterna, uma mulher preta, baiana, que bebia vinho e declamava poesias depois do almoço. Achava aquilo hipnotizante. Mas nunca pensei “Eu vou fazer isso”. Mas adentrar o mundo da arte foi logo perceber a predominância de homens. Por vezes conseguia me emocionar, sem dúvida, porém logo percebi que quando era uma mulher falando, cantando, escrevendo, eu sentia mais. A identificação era instantânea e provocava uma magia interna. Pra mim, aí começa o feminismo na minha vida.

Quando era uma mulher falando, cantando, escrevendo, eu sentia mais. A identificação era instantânea e provocava uma magia interna

Uma das minhas melhores amigas da vida, me contou no teatro, onde estudávamos juntas, que ela gostava de meninas. Eu tinha 19 anos, era virgem, e só consegui dizer “Tranquilo, amiga”. Obviamente nada era tranquilo no mundo, muito menos no Brasil, um país que mata ao menos uma pessoa LGBTQIA+ por dia. Mas num mundo idílico, onde minha vênus em aquário atua de forma absolutamente livre, aquela informação era tranquila. Nossa amizade não mudaria por conta daquilo. E apesar de achá-la deslumbrante, nunca tivemos atração sexual, de cara já tivemos uma relação meio maternal até. Durante a época do teatro, onde paralelamente eu também embarcava em viagens musicais sem volta, até mesmo preferindo essa trip, tive acesso a muitas artistas lésbicas ou bissexuais, e sempre fui tragada para aquele universo. Ouvir Angela Ro Ro cantar uma música com letra declaradamente para uma mulher, ler “Eu Sou uma Lésbica”, da Cassandra Rios, a primeira escritora brasileira a vender 1 milhão de exemplares, porém ultraperseguida por sua sexualidade na época da ditadura, assistir a filmes como “Chasing Amy” (mesmo com todas cenas clichês e problemáticas para a atualidade) e também ver “The L Word”, a primeira série centrada no universo lésbico e bissexual: tudo isso me tocou, tudo isso foi muito importante na contramão dos trocentos filmes, livros, séries, músicas heterossexuais que eu ouvi, li e vi.

Não lembro exatamente quando eu percebi que a heterossexualidade é uma inclinação socialmente imposta nos seres humanos desde sempre, a famosa (mas poderia ser mais) heterossexualidade compulsória ou heterossexualidade obrigatória. Se você nasce menina, logo perguntam “e os namoradinhos?” e o contrário para os meninos. (Uma bobagem imensa e que já começa com essa cafonice do “chá da revelação”, onde um bolo cor rosa significa que você vai ter uma filha. Bolo azul significa menino. Significa mesmo? Risos e choros.) Se você é do tipo que obedece e não compreende que a vida tem desvios, curvas e complexidades, você só entra na óbvia e torturante roda capitalista e normativa, sem espaço para questionamentos. E é fora da curva que está o despertar, a filosofia, a indagação, a pergunta e a falta de resposta – e por isso mesmo, uma resposta. Muita terapia (dos mais diversos tipos), muitas amigas, e uma autoinvestigação non-stop que levo com muita seriedade, me levaram a um inquérito pessoal: o que eu fui ensinada? Mas o que eu quero e desejo realmente? Caminho sem volta e que recomendo com força.

Jamais compreendi frases como “Você só não conheceu um homem que te pegou de jeito” ou até mesmo indagações de porquê tal mulher estava agindo como um homem. Crescendo e optando receber outras informações que não só do Jornal Nacional ou do Globo (finalmente a chegada da internet pode abrir minha cabeça classe média tijucana), fui me horrorizando com notícias de lesbofobia e “estupro corretivo”, essa expressão chegou mais tarde, mas notícias desse crime já eram sabidas por mim no início dos anos 2000. Em diversas situações da minha vida sofri atos de misoginia e machismo. Percebi que minhas atitudes igualitárias com meus irmãos dentro de casa não se refletiam tanto na rua. Em casa criei voz e fiz o que eles faziam, mas na escola ou situações diversas, tudo era bem diferente. Acompanhei com muito horror e indignação algumas amigas sofrerem lesbofobia. Eu mesma já sofri bifobia, e até hoje é um lugar delicado pra mim, pois há um preconceito enorme com a facção B da sigla. Há quem jura que estou indecisa. E há também a absurda ideia de “promiscuidade”, que a sociedade associa a essa sexualidade. Ou ainda: se sou casada com um homem, como assim sou bi? Thiago, meu companheiro há 7 anos, me apresentou a história da rainha Cristina, da Suécia, que foi criada como um príncipe. E amou mulheres. Eu não sabia disso, e ele me apresentou o filme “A Jovem Rainha” (não é uma obra de arte, mas a quantidade de filmes com o tema é tão menor que o normativo, que super vale à pena ver). Mulheres bis (e lésbicas) também sofrem muita fetichização, e ainda há pessoas que acham que bissexuais são vetores de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST). A invisibilidade bissexual é imensa e por mais analisada que eu seja, as pessoas parecem saber mais do que eu sobre eu mesma. Eu digo “que loucura” quando isso acontece, mas é “que preconceito” mesmo.

Mulheres lésbicas e bis são violentadas nas ruas e dentro de casa, são muitas vezes esquecidas pelo Estado (e é preciso denunciar a negligência deste, sempre), são fetichizadas por homens e lutam diariamente pelas suas existências, que são múltiplas, complexas e subjetivas. A luta pelo direito básico de existir, de amar, de ter tesão, é diária. E vem de longe. Que o futuro seja amplo, livre e possível.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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