Vou deixar de ser feliz por medo de ficar triste?
Uma história de amor atravessada por um gap de gerações é o mote da peça de Yuri Ribeiro. Dois anos depois da estreia, o texto volta em livro e enriquecido por bastidores
POR QUE LER?
“Se você não acredita em amor, seja lá o que signifique amor pra você, nem embarque nessa, ou embarque se estiver disposto a acreditar”, diz a dedicatória da peça “Vou Deixar de Ser Feliz com Medo de Ficar Triste?”, que o ator e dramaturgo Yuri Ribeiro oferece à produtora teatral e empresária Claudia Wildberger. O clichê da fé inabalável no amor cai bem para a história dos dois: separados por uma diferença de 25 anos de idade, eles driblaram o medo das reações da família e dos amigos e os olhares atravessados de estranhos para ficarem juntos.
Esse roteiro da vida real inspirou a criação do espetáculo, que chegou aos palcos cariocas em 2018 e agora ganha versão em livro. Com “os pés na verdade do dia a dia, e as mãos amarradas na ficção para apimentar um pouco”, a narrativa é singela e bem humorada – apesar de expor os conflitos internos do casal e, principalmente, aqueles gerados pela opinião alheia. No teatro, foi bem recebida, muito pela ambientação de fábula circense, com inserções musicais e poéticas, que dá ares lúdicos a um relacionamento essencialmente moderno e urbano.
Na edição da Ubook, o texto integral da peça é enriquecido com prefácios sobre os bastidores, fotos, croquis de figurinos e plantas do cenário. Para quem gosta de espiar por trás das cortinas, está tudo ali: do processo de criação à noite de estreia. Mas o protagonismo é mesmo da trama – afinal, uma boa história de amor não faz mal a ninguém.
CENA 14 – A BRIGA
(Primeira estrofe de “Lua branca“, de Chiquinha Gonzaga.)
(Enquanto Daniel canta, Andrea pega todas as flores que Daniel deu a ela e as deixa desabar. São muitas flores. Ao fim da música, Caio, embriagado, surge pela plateia. E vai passando entre as fileiras, causando algum incômodo na plateia.)
Oh, lua branca de fulgores e de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Vem tirar dos olhos meus o pranto
Ai, vem matar essa paixão que anda comigo
Oh, por quem és desce do céu, oh lua branca
Essa amargura do meu peito, oh, vem, arranca
Dá-me o luar de tua compaixão
Oh, vem, por Deus, iluminar meu coração
CAIO – (Nota-se que ele bebeu um pouco) Palmas pra ele!!! Palmas pro Tocantista, retirante.
(Caio segue, incomodando.)
DANIEL – (Ignora) Quando eu vim pro Rio, minha mãe me ensinou o seguinte…
(Caio arrota.)
DANIEL – Maria, Maria, passa na frente e seja minha guia, me cubra com seu manto sagrado…
CAIO – Cobre nada…
DANIEL – Se bala perdida quiser me atingir, seu manto há de me cobrir.
CAIO – Opa! Sem mão na bunda.
DANIEL – E foi assim que a minha mãe me ensinou a me proteger de bala perdida, não dá pra duvidar que ela é devota de Maria.
CAIO – Palmas, Palmas pro Tocantista. Esse pessoal que vem do Nordeste pra cá e acha que é tudo artista, né…
DANIEL – Norte.
CAIO – É o quê?
DANIEL – É Norte. Não é Nordeste.
(Sobe no palco.)
CAIO – Ah… Aqui no Rio tem bala perdida. E lá no Norte tem o quê? Flecha perdida?! (Tempo. Imita um índio.)
DANIEL – Cariocas são os melhores, não é? Nasceram com o mar debaixo do umbigo e o resto do Brasil nas costas.
CAIO – É!
DANIEL – Viva o Rio de Janeiro, a Capital do Brasil.
CAIO – Palmas para Palmas! Viva o Paraíba do Tocantins!
DANIEL – Ah! Vai pra puta que te pariu!
(Luta física entre Caio e Daniel. Andrea tenta separar. Até que consegue.)
ANDREA – CHEGAAAA! Chega! Parou! Larga meu filho. Parou… Parou… Vai pra casa, Caio. Você tá bêbado!
(Daniel está caído no chão. Caio está em pé, apoiado em Andrea.)
ANDREA – Ai! Que cheiro de cachaça, meu filho.
CAIO – Quem terminou em pé?!!! Mãe, eu te amo, tá? Eu só estava tentando te proteger do mau…
(Daniel não sabe o que fazer. Longo silêncio. Percebe todas as flores jogadas no chão, pega uma e se senta no queijo. Longo silêncio.)
CENA 15 – A SEPARAÇÃO
ANDREA – Eu acho que está na hora de… a gente parar com essa nossa história.
DANIEL – Não tem como parar essa nossa história. A história nunca para. Ela segue pra outro rumo.
ANDREA – Eu acho melhor a gente se preservar. O Caio não tá bem, ele é meu filho. Eu não posso escolher entre ele e você. Isso não é justo comigo.
DANIEL – Claro que não. Não é mesmo?
ANDREA – Você é ator, eu sou empresária artística, acho que pra você essa relação, até profissionalmente falando, não foi saudável. Pra mim também não. A nossa diferença de idade… Eu… Acho que foi bom enquanto a gente foi feliz…
DANIEL – Foi feliz… Você já terminou comigo, Andrea? (Tempo) Você já colocou a gente no passado. Você já decidiu, eu não tenho mais nada pra te dizer.
(Curinga pega em uma das pontas do baú uma gaveta/mala e um guarda-chuva vermelho. Entrega a Daniel, um por um. Ao abrir o guarda-chuva, vê-se que é em formato de coração. Daniel caminha até a direita baixa do palco. Olha pela última vez para Andrea, que vira o rosto para o lado oposto. Daniel segue seu caminho atravessando a plateia até sair do teatro pelos fundos.)
CENA 16 – A SOLIDÃO
Oh, lua branca de fulgores e de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Vem tirar dos olhos meus o pranto
Ai, vem matar essa paixão que anda comigo
Oh, por quem és desce do céu, oh lua branca
Essa amargura do meu peito, oh, vem, arranca
Dá-me o luar de tua compaixão
(Arranca a peruca.)
Oh, vem, por Deus, iluminar meu coração
(Trilha sonora – melodia de “Lua branca” continua.)
(Andrea vai até o baú, começa a tirar o corpete que veste, pega uma blusa branca para vestir e uma bolsa. De dentro da bolsa tira um espelho e um lenço umedecido. Começa a tirar a maquiagem. Tadeu recolhe as flores jogadas e as coloca no baú. Pega uma calça jeans e leva em direção a Andrea.)
CENA 17 – O OMBRO AMIGO
(Andrea está de blusa branca e calça jeans. O sonho parece ter acabado.)
TADEU – Meu amor, o Caio não vai morrer por causa dessa garota. Pelo amor de Deus. Quantos amores você perdeu na adolescência. Você se matou?
ANDREA – Não.
TADEU – Claro que não. Seu filho não é mais um bebê pra você ter que pedir pra ele aceitar seu namorado. Ele tem que te respeitar e ponto final.
ANDREA – Ai, Tadeu…Ficou tudo tão pesado, tão complicado. Eu não sei se eu quero.
TADEU – Você tá arrasada sem ele, amor. Dá pra ver na sua cara.
ANDREA – Mas não é por mim. Eu acho que ele estava perdendo a juventude dele comigo. Perdendo o tempo dele de aventura.
TADEU – Quer aventura maior e mais gostosa do que você, meu amor?
ANDREA – Ai, Tadeu…
TADEU – Se tem uma coisa que ele NÃO estava fazendo com a juventude dele, era perdendo ela com você. Ele falou isso pra você? Ah, ele não falou isso!!!
ANDREA – Não. Calma. Ele não falou isso, Tadeu. Eu que pensei isso.
TADEU – Por quê, né? Por que é que Deus deu a habilidade de pensar pro ser humano, se é pra pensar merda?
Meu amor, com você esse menino teve tempo pra respirar. Ele… Ele aprendeu a olhar pro mundo com os olhos de quem já viu muita coisa, meu amor!! Você permitiu que ele pudesse ser mais leve. Por mais absurdo que pareça o que eu vou falar agora, você fez ele ficar mais jovem, menos urgente, mais tranquilo. Você deu novos ares pra ele respirar.
Você era um peixe, ele era um pássaro. E você criou asas pra voar junto com ele.
E ele te trouxe o que ele tem na essência dele, que é a arte, a loucura, a sede, o desejo, a busca. Ele te fez gozar, Andrea!
ANDREA – Eu te amo.
TADEU – Eu também te amo.
(Se abraçam.)
TADEU – Volta com ele.
ANDREA – Acho que não dá mais tempo…
TADEU – Nunca é tarde pra tentar…
(Tadeu sai de cena pelo fundo do palco. Andrea deita no chão, no proscênio e se recolhe como um feto. Em cena, além de Andrea, está Jujuba, solitário. Um palhaço triste. Abandonado.)
- Vou Deixar de Ser Feliz por Medo de Ficar Triste?
- Yuri Ribeiro
- Ubook
- 96 páginas
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