Bianca Santana
Racismo, colonialismo e falta de ar
A recomendação da OMS, de ficar em casa para estar protegido durante a pandemia, vale, desde que você não seja um jovem negro
“Quando eu ouço o que George Floyd morreu dizendo, é lógico que eu lembro do dia em que um policial apertou meu pescoço até eu desmaiar. Enquanto eu sufocava, falava a mesma coisa: ‘eu não consigo respirar’”, compartilhou Wellington Lopes em uma reunião de que participei esta semana. O cientista social negro, jovem brilhante, é um dos coordenadores de núcleo da UNEafro Brasil e tem dedicado seus dias à entrega de cestas básicas e materiais de higiene em Poá, região metropolitana de São Paulo, além do apoio comunitário a pessoas com sintomas de COVID-19.
Dentre muitos momentos compartilhados com Wellington, registro aqui o ato em fevereiro de 2019, em protesto ao assassinato de Pedro Henrique Gonzaga, aos 19 anos de idade. Um segurança do supermercado Extra, no Rio de Janeiro, sufocou o jovem com um golpe de gravata até a morte. Embora me sinta um disco riscado ao perguntar, repito: onde você estava quando o movimento negro se manifestava diante desta morte?
Desde abril, o noticiário anuncia que o sistema de saúde de São Paulo pode entrar em colapso. Na prática, mais de 7 mil pessoas mortas por COVID-19 na cidade, mais de 30 mil no Brasil, e relatos diários de gente que precisa de hospital e é mandada para casa.
Acompanhando de perto um dos casos atendidos pelo projeto Agentes Populares de Saúde, da UNEafro, passei noites sem dormir preocupada com uma senhora de 69 anos de idade, cardíaca, com febre, tosse, falta de ar, cansaço. No primeiro dia de sintoma, a família foi com ela a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), onde recebeu uma dipirona e foi orientada a voltar para casa.
Embora me sinta um disco riscado ao perguntar, repito: onde você estava quando o movimento negro se manifestava diante desta morte?
Uma filha de santo dela, coordenadora de núcleo da Uneafro também, começou a monitorar os sintomas em casa, três vezes ao dia, em contato permanente com as médicas voluntárias do projeto. No quinto dia de sintoma, quando começa o período mais crítico, a saturação caiu, e a família foi orientada a levá-la ao hospital imediatamente. Depois de muitas horas e um raio-X, recebeu o diagnóstico de sinusite, um antibiótico, e foi mandada para casa mais uma vez.
Tensas, seguimos monitorando o quadro em mais pessoas e estudando possibilidades para atendê-la em caso de agravamento. Dois dias depois, no sétimo de sintoma, a saturação baixou mais uma vez e, ainda com febre, foi levada a outro hospital. Oito horas depois, sem o resultado do teste rápido de COVID-19, foi orientada a fazer uma tomografia. Mas o aparelho havia sido retirado de lá durante a pandemia, levado para outro hospital a algumas quadras dali. Ela teria de esperar uma ambulância para fazer o deslocamento, não permitido por meios próprios, para fazer o exame. Como ouviu que algumas pessoas já esperavam fazia 16 horas, foi levada para casa.
No dia seguinte, foi para outro hospital, onde fez o exame e recebeu resultado positivo para COVID-19. Ficou na retaguarda do pronto-socorro até que um leito na enfermaria fosse liberado, já que todos estavam lotados. Uma mancha no pulmão indica uma pneumonia séria. E é impossível não perguntar se teria sido mais simples tratar no início, quando ela foi ao hospital pela primeira vez, sem precisar chegar à quarta vez.
O elevado número de pessoas que não sobrevivem ao COVID-19 não tem a ver apenas com a falta de leitos de UTIs e respiradores. Observando apenas um caso é possível perceber inúmeras falhas no sistema de saúde. Negligência? Ou protocolo para idosos negros que dependem da saúde pública?
Não é curioso que uma tradução seja mais conhecida que um pensamento original de uma mulher negra brasileira?
A zona leste de São Paulo não tem um único hospital de campanha. Muitos postos de saúde estão com as portas fechadas ou com atendimento parcial. Inúmeras pessoas têm desmarcado consultas médicas ou deixado de procurar prontos-socorros em casos de necessidade. Fica evidente que, além das mortes por COVID-19, o número de óbitos por outras doenças também tem aumentado em relação ao mesmo período em anos anteriores. Segundo estudo do epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP, noticiado na BBC, em março, a cidade de São Paulo teve 743 mortes a mais que a média para o mesmo mês dos últimos cinco anos, excluindo homicídios e acidentes em geral. Os casos de feminicídio quase dobraram e o número de homicídios também aumentou em São Paulo durante a pandemia.
Três dias depois que o garoto João Pedro Matos Pinto foi assassinado dentro de casa por policiais, no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, dois outros jovens foram assassinados na Comunidade da Ilha, na zona leste de São Paulo: Gabriel Dantas, de 18 anos, e Juan Ramos, aos 16, também baleado dentro de casa. A recomendação da Organização Mundial de Saúde, de ficar em casa para estar protegido durante a pandemia, vale, desde que você não seja um jovem negro. “Violência racial é como síndrome respiratória aguda grave, não permite respirar!”, tuitou Sueli Carneiro em 30 de maio.
E se você realmente quiser compreender como o racismo opera no Brasil, pelo signo da morte para negras e negros, leia a tese de Sueli Carneiro: “A Construção do Outro Como Não-Ser Como Fundamento do Ser”, defendida em 2005, na Faculdade de Educação da USP. Ela escreveu mais ou menos no mesmo período em que Achile Mbembe publicou “Necropolitique”, depois traduzido para português como “Necropolítica” (N-1 Edições, 2018). Não é curioso que a tradução seja mais conhecida que um pensamento original em português, formulado por uma mulher negra brasileira? Relaciono com vocês acharem lindos os protestos dos negros norte-americanos.
Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos
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