O Prazer Censurado
Filósofa francesa Catherine Malabou questiona em livro o apagamento do clitóris e o que ele diz sobre o cerceamento histórico do prazer feminino
Quantas representações do clitóris você já viu em pinturas, esculturas e até livros técnicos sobre sexualidade? A resposta a essa pergunta para a maioria das pessoas, segundo a filósofa francesa Catherine Malabou, será provavelmente muito poucas, senão nenhuma. É desse apagamento que ela parte em “O Prazer Censurado: clitóris e pensamento” (Ubu, 2024), livro onde fala sobre a visão histórica do único órgão que “serve apenas para o prazer” e como sua existência acabou sendo ignorada nas principais narrativas ocidentais sobre corpo e sexo.
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“O clitóris sempre foi associado a um gozo excessivo. Inapto para a reprodução. Censurado mas lúbrico”, aponta no capítulo introdutório. Na obra, reforça como a censura ao órgão se confunde com o machismo e a própria negação histórica da sexualidade e do prazer feminino. Embora ele seja hoje muito mais discutido e estudado do que no passado, a autora argumenta ainda que o clitóris não vem sendo suficientemente teorizado, permanecendo uma figura enigmática. E defende que, num mundo onde já se cogitou que homens e mulheres seriam apenas duas variações de um mesmo sexo, o órgão pode estar no centro de um importante debate que ressignificaria os limites hoje estabelecidos entre masculino e feminino.
Numa jornada que perpassa temas como a mutilação genital feminina — que, diferente do que muitos pensam, não aconteceu só na África —, a problematização das ondas feministas por uma perspectiva queer, intersex e trans e a normatização do sexo, “O Prazer Censurado” é uma das obras que exploram de forma mais profunda um tema que ainda engatinha no debate teórico e histórico. Nela, Malabou mostra como a falta de finalidade para além do puro prazer pode estar no cerne da explicação para esse apagamento e até mutilação, principalmente por se tratarem de corpos femininos.
Apagamentos
O clitóris é uma pedrinha minúscula alojada no fundo do sapato do imaginário sexual. Na mitologia grega, dizia-se que a jovem Clitóris, conhecida por sua figura esbelta, era pequena “como um seixo”. Por muito tempo escondido, desprovido de nome ou representação artística, ausente dos tratados de medicina, não raro ignorado pelas próprias mulheres, o clitóris teve ao longo dos séculos uma existência de scrupulus, na acepção original do termo, ou seja, a pedrinha no sapato que incomoda o passeio e atormenta o espírito. A etimologia hesitante do termo permite situar sua morfologia entre a “colina” (kleitoris) e o “fecho” (kleidos). Clitóris: esse pequeno segredo intumescido que persiste, resiste, incomoda a consciência e fere o calcanhar é um órgão, o único, que serve apenas para o prazer — logo, “para nada”. O nada de tudo, o imenso nada, o tudo ou nada do gozo feminino.
O primeiro uso anatômico da palavra se deve a Rufo de Éfeso, médico grego que viveu entre o século I e II EC e que brinca de esconde-esconde com seus sinônimos: “A ninfa ou murta é o pedacinho de carne musculosa que pende no meio [da fenda], outros a chamam de hipoderme, outros de clitóris, e se diz clitorizar para expressar o toque lascivo dessa parte”. Em 1561, Gabrielle Falloppio, que emprestou seu nome às famosas trompas, alegou tê-lo descoberto. Em francês, o termo aparece em 1575 sob a pena de Ambroise Paré, que o grafa cleitoris e em 1587 o suprime misteriosamente de suas Œuvres. Mal foi impresso e já foi censurado.
Clitóris: esse pequeno segredo intumescido que persiste, resiste, incomoda a consciência e fere o calcanhar é um órgão, o único, que serve apenas para o prazer — logo, “para nada”
Corta para o século XXI. Uma ginecologista explica a uma atordoada plateia masculina como o clitóris se comporta durante o amor ao entrar em contato com pênis, dildos, dedos, línguas, como se movimenta, como fica durante a penetração ou a carícia. Cúmplice da vagina, sua parceira. Mas também pode gozar sozinho. Animado por uma dupla orientação erótica. Vaivém, quando acompanha os movimentos da vagina penetrada. Endurecimento, quando se erige como uma crista. Às vezes os dois juntos. Às vezes um sem o outro. Sem optar por um ou outro, o clitóris desorienta as dicotomias.
Essa vida dupla, que já questiona a norma da heterossexualidade, também passou despercebida por séculos. As primeiras formas de reconhecimento do clitóris serviram apenas para reiterar a ignorância a respeito dele, equiparando-o ao pênis. É muito conhecida a teoria da menina-moleque [fille-garçon manqué, em francês, tomboy, em inglês, ou maria-rapaz, em português de Portugal], de Freud, para quem o sexo feminino tem a forma de uma ausência. Cicatriz de uma castração, o clitóris é o pênis atrofiado das mulheres. Freud ainda é, à sua maneira, prisioneiro do modelo unissexo. Em uma tese audaciosa, Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, Thomas W. Laqueur mostrou que, da Antiguidade até o século XVIII, impôs-se a visão do sexo único, segundo a qual as diferenças anatômicas entre homens e mulheres seriam insignificantes. Acreditava-se que havia um único sexo: os órgãos sexuais femininos se encontravam no interior do corpo, os do homem, no exterior. Mais tarde, a descoberta anatômica do clitóris não será suficiente para aposentar por completo esse esquema.
Acreditava-se que havia um único sexo: os órgãos sexuais femininos se encontravam no interior do corpo, os do homem, no exterior
Daí também a construção fantasmática da lésbica, homem invertido, radicalmente demolida por Simone de Beauvoir.
Ao mesmo tempo, ainda que tido por pênis estropiado, o clitóris sempre foi associado a um gozo excessivo. Inapto para a reprodução. Censurado mas lúbrico. Diz uma lenda que certas górgones, dotadas de um clitóris volumoso, eram condenadas à eterna masturbação. A ablação do clitóris, a clitoridectomia, aliás, surgiu como meio terapêutico para castrar a mulher uma segunda vez, acalmando seus ardores. Solução radical para a infinitude do prazer.
A excisão está presente em todas as culturas e não só na África, como geralmente se acredita. No Ocidente, foi praticada como terapia para histéricas e ninfomaníacas. Há diversas formas de seccionar o clitóris. A física, sem dúvida. Mas também existe uma gama extensa de excisões psíquicas. A legendária frigidez, contraponto da ninfomania, é uma delas.
Ausência, ablação, mutilação, negação. Pode o clitóris existir nas mentalidades, nos corpos, nos inconscientes, de outra forma que não em negativo?
O clitóris sempre foi associado a um gozo excessivo. Inapto para a reprodução. Censurado mas lúbrico
- O Prazer Censurado: clitóris e pensamento
- Catherine Malabou (trad. Célia Euvaldo)
- Ubu
- 128 páginas
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