Carol Ito: “Pensar que masturbação ainda é tabu me gerava broxadas imensas” — Gama Revista
Conversas

Carol Ito: “Pensar que masturbação ainda é tabu me gerava broxadas imensas”

Autora dos quadrinhos “Siriricas Tristes” usa deboche como arma contra o constrangimento em torno do autoprazer feminino 

Dolores Orosco 12 de Dezembro de 2023
Ilustração retirada do livro “Siriricas Tristes” / Foto: Divulgação

As heroínas dos quadrinhos de Carol Ito, 31 anos, já descobriram as delícias de uma boa sessão de masturbação, seja ao acordar, depois do almoço, durante o banho ou antes de dormir. Se o mundo parece estar pegando fogo, “ir ali bater uma siririca” é a melhor solução. No entanto, elas também estão tristes. Estão cansadas dos dates desastrosos com boys dos apps de relacionamento, com a não-monogamia unilateral, com a masculinidade tóxica, com as inseguranças de autoimagem. Adicione a essas contradições pitadas de um humor altamente ácido e o resultado é o saboroso “Siriricas Tristes e Outras (In)Felicidades” (Veneta; R$ 54,90; 92 págs), coletânea recém-lançada das tiras postadas pela autora em suas redes sociais, nos últimos 4 anos.

Criadas a partir de experiências pessoais e dos estudos de gênero da quadrinista, boa parte da série nasceu durante a pandemia. Jornalista de formação, Carol fez diversas reportagens sobre como as pessoas estavam vivendo a sexualidade com a obrigatoriedade do isolamento e o risco da contaminação pela Covid quando não havia vacina. Do texto jornalístico, ela levou o tema para as HQs. “Fiquei obcecada por esse assunto, até porque eu mesma estava buscando maneiras de viver o meu tesão em pleno apocalipse”, conta. “Mas falar sobre siririca é motivo de constrangimento até para as mulheres mais independentes, que vão atrás do próprio prazer. Quando tentava entrevistá-las para minhas matérias, a maioria só topava falar se fosse anonimamente.”

Carol sentiu a mão pesada do tabu há duas semanas, quando publicou trechos do livro em suas redes sociais: foi atacada em uma dessas reações virtuais de manada, que incluíram até ameaças de morte. “Claro que fiquei assustada no dia, principalmente por ser um hate majoritariamente masculino, me ofendendo pessoalmente”, explica a autora. “Mas como jornalista, sempre gostei de falar de questões que incomodam. Nos quadrinhos não seria diferente”, completa Ito, que no ano passado venceu o prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, por uma reportagem em quadrinhos sobre a vivência de mulheres na Cracolândia, publicada na revista Piauí.

A Gama, Carol fala sobre seu novo livro, autoprazer, referências femininas nos quadrinhos e diz por que publicar uma tira sobre “punhetas tristes” está fora de cogitação – apesar de não faltarem apelos para tal.

Os toys me fizeram repensar várias coisas sobre minha sexualidade e como ter prazer sozinha é bom pra caramba

G Você sofreu um ataque em massa nas redes sociais ao postar trechos de “Siriricas Tristes”. Por que o autoprazer feminino é um tema que incomoda tanto?
Carol Ito
Sempre recebi hate por conta do meu trabalho, mas nunca nesse tom tão violento. Dessa vez foi um dia inteiro de ofensas e ameaças em um post na minha conta no Instagram, majoritariamente escritas por homens, que sugeriam até a minha morte. O que incomodou foi uma tira que mostrava a personagem buscando inspiração para sua siririca em sites de pornografia gratuita. Já fui muito criticada por abordar esse tema, até por mulheres que defendem que esse tipo de filme deveria ser banido, por ser um dos grandes responsáveis pela precariedade da nossa vida sexual. Não acho que a coisa seja assim tão simples, acho até um pouco ingênuo pensar assim. Sei que é um vespeiro falar sobre isso, que é um assunto que deve ser aprofundado, mas não posso deixar de passar por ele nas minhas tirinhas. Porque quando falamos sobre desejo e erotismo acabamos esbarrando nesse lugar da pornografia e de como ela traz referências muito ruins do que é sexo.

 Divulgação / “Siriricas Tristes”

G Nessa tira, em especial, a personagem vai atrás de um filme pornô para ficar excitada, mas acaba broxando ao problematizar a falta de protagonismo feminino nas cenas. A tomada de consciência das mulheres em relação ao próprio prazer atrapalha o orgasmo?
CI
De certa forma, sim. Porque esse tipo de conflito aparece não só em relação ao consumo de pornografia mainstream, mas na maneira de a gente se relacionar com os homens cis hoje. Em várias situações nos vemos broxadas porque é tudo tão desgastante… Até na hora da siririca temos que lidar com o fato de que nossos desejos foram moldados pelos filmes pornôs, por essa estrutura patriarcal e por tantas questões sociais e políticas que o machismo impôs. Por isso, nesse caso, a siririca é triste.

G “Uberização dos relacionamentos” e “amor a vácuo”, uma versão contemporânea do amor líquido de Bauman para explicar o “ghosting”, são algumas discussões que você propõe na sua HQ. Qual seu ponto de partida para o uso desses conceitos?
CI
Minhas tiras têm traços autobiográficos. São fruto de situações que vivi, de conversas que tenho com minhas amigas e familiares. Faço quase um diário das minhas experiências, em forma de humor. Pelos menos vamos rir juntos desses desastres cotidianos… Já esses conceitos mais sociológicos, digamos assim, vêm dos autores que leio e dos cursos que faço. Outro dia fiz um curso on-line sobre a influência do capitalismo e do liberalismo na formação da subjetividade. Gosto de pescar leitores com esses conceitos da sociologia e da psicanálise dentro de um contexto pop, como o dos apps de paquera e dos dates desastrosos. Quero popularizar essas discussões de uma maneira divertida, embora seja triste pensar que as pessoas estejam tão fragilizadas emocionalmente. Claro que as mulheres estão mais donas de si, mas ainda existe toda uma estrutura que sempre tenta nos impedir de fazer escolhas melhores quando o assunto é sexo e relacionamento.

 Divulgação / “Siriricas Tristes”

G Por que você escolheu a masturbação feminina como fio-condutor do seu livro?
CI
Quando li o “Pornô Chic”, da Hilda Hilst, fiquei completamente chocada com sua ousadia. Por mais que eu já falasse sobre siririca nas minhas tiras, sempre me questionava. No começo ficava até constrangida. Pensava: “Pô, será que eu estou tocando nesse assunto de uma forma legal?”. Porque eu mesma tenho minhas travas… Então descobrir que a Hilda já falava sobre isso de uma forma tão escancarada e brutal, me encorajou. Também fui muito influenciada pelo Georges Bataille [francês, autor do livro “O Erotismo”]. A capa do livro dele é a imagem de uma suruba e ele vai fundo ao falar de desejo, erotismo e de como a sexualidade pode ser uma opção de vida, mas de morte também. Mas a minha produção sobre siririca ganhou força mesmo na pandemia. Porque eu gosto muito de sexo, sabe? E quando o isolamento começou a se mostrar uma realidade que tão cedo não acabaria, bateu o desespero. “E agora? Como eu vou transar presa dentro de casa?”, eu pensava. Além de quadrinista, também sou jornalista, e, na época, fiz muitas reportagens sobre como as camgirls estavam faturando alto, como os sites pornôs estavam sendo cada vez mais acessados e como as pessoas estavam tentando se virar nesse campo da sexualidade. Eu mesma estava ali, pensando em formas de manter o meu tesão em pleno apocalipse. Já tinha alguns dildos, mas foi na pandemia que descobri os vibradores pensados para a mulher, focados no clitoris, que oferecem outras formas de prazer além da penetração. Que mundo mágico se abriu para mim! Sugador de clitoris é tão maravilhoso! Não conheço nenhuma mulher que tenha usado e não tenha gostado. Esses toys me fizeram repensar várias coisas sobre minha sexualidade e como ter prazer sozinha é bom pra caramba!

G Mas o autoprazer ainda é um tabu para grande parte das mulheres.
CI
Sim, em minhas reportagens eu notava como era difícil para as mulheres falar sobre isso. Até para as mais independentes, que tinham seus vibradores e iam atrás do próprio prazer. Quando tentava entrevistá-las, a maioria só topava falar se fosse anonimamente. Algumas delas diziam que o parceiro sentia ciúme. Porque para alguns homens se trata de uma competição. Eles se sentem perdendo para o vibrador. Esse tipo de coisa me deixava perplexa. Por mais que eu estivesse me sentindo a rainha dos vibradores na pandemia, com uma caixa cheia deles, o mundo real estava ali me mostrando que as mulheres não podem ter prazer e que a sociedade condena aquelas que falam sobre isso abertamente. Pensar que masturbação ainda é tabu me gerava broxadas imensas, mas que serviam de combustível para eu falar cada vez mais do assunto na série das “Siriricas Tristes”.

G Hoje vemos um número maior de mulheres no universo das HQs, mas ainda é bem menor que o de homens. Quais foram as autoras que te inspiraram?
CI Cresci lendo quadrinhos de homens e fui conhecer as quadrinistas bem mais tarde, só na faculdade, coisa de 10 anos atrás. Eu lia o André Dahmer, o Caco Galhardo, o Joe Bennett, mas não tinha noção de como era o rolê das mulheres. A Fabiane Langona foi uma das primeiras que conheci, depois a Maitena, que são autoras que falam mais sobre as questões do universo feminino, dessa maneira mais debochada como a minha. Recebo muitos feedbacks de leitores que dizem que nunca tinham visto uma quadrinista falar sobre masturbação de maneira tão natural e fazendo piada como eu faço. Mas é que o desafio da geração anterior à minha era trazer o tema da sexualidade feminina, introduzir os assuntos. Falar sobre siririca. Para mim o desafio é falar de um jeito diferente: eu falo de siriricas tristes, o que traz várias camadas a mais. As mulheres que vieram antes desbravaram esse caminho e encorajaram muitas que vieram depois.

 Divulgação / “Siriricas Tristes”

G A masculinidade tóxica entrou no centro das discussões sobre sexo e relacionamento. Os homens também estão passando por “punhetas tristes”?
CI
Recebo alguns directs de homens pedindo as “punhetas tristes”, com as crises masculinas atuais. Mas não vou fazer, que façam eles! Os homens estão muito atrasados no debate sobre masculinidade. Nos últimos cinco anos, as mulheres fizeram um barulho enorme discutindo empoderamento em tantas camadas diferentes enquanto eles seguem perdidos. Infelizmente, as “punhetas tristes” trariam discussões que pareceriam antigas, como “minha parceira tem uma carreira melhor que a minha e eu me sinto mal com isso” ou “minha parceira quer que eu seja um adulto funcional”… Homens, melhorem! Já deu! Revejam esses comportamentos tão atrasados. Gosto muito da Liv Strömquist [quadrinista sueca, autora do livro “A Rosa Mais Vermelha Desabrocha”], que faz uma análise sobre como é difícil para as mulheres se relacionarem e se apaixonarem pelos homens hoje. Eles perderam muitos espaços de dominação e obviamente não estou falando de todos, há de se considerar questões de gênero, raça e classe. Mas eles não são mais os únicos a ocupar os espaços de poder nas empresas, na política… Nos relacionamentos, eles estão tendo que lidar com o grande e mágico conceito de consentimento. Agora não podem mais chegar numa balada e agarrar uma mulher à força. Então estão tendo que lidar com essa frustração. Não é à toa que grupos masculinistas estão crescendo e tendo reações violentas diante de qualquer sinal de rejeição feminina. Queria muito saber o que se passa na cabeça dos punheteiros que estão tristes, mas vou esperar que alguns deles faça esse quadrinho aí…

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