Isabelle Moreira Lima
Se comfort food existe, deve ser italiana
No centenário de Marcella Hazan, seus fundamentos da cozinha italiana nos ensinam a tirar o melhor de ingredientes sem inventar demais
Apesar do pódio inquestionável que a gastronomia espanhola assumiu nas últimas décadas, desde que lançou ao mundo a chamada cozinha tecnoemocional de Ferran Adrià (tendência confirmada este ano com a escolha do restaurante Disfrutar, de Barcelona, como o melhor do mundo pelo 50 Best), é a cozinha italiana que tem sido uma grande descoberta para mim. Quer dizer, difícil alguém que frequenta restaurantes profissionalmente há quase 20 anos (a maioria deles passados em São Paulo) descobrir a cozinha italiana só agora, mas digamos que cheguei a uma maturidade que me permite entender e valorizar esse universo. A culpa é de Marcella Hazan, autora cujo centenário de nascimento é comemorado neste ano e que pode ser considerada uma das principais difusoras dessa cultura alimentar para o mundo.
Tudo começou há um mês, no Dia das Mães, quando fui presenteada com “Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica”, um livrão de 698 páginas que ensina, realmente, tudo: desde as bases do refogado, que por lá se chama soffritto e inclui cebola, salsão e cenoura, até pratos regionais clássicos como o abbacchio, o cordeirinho de panela à romana, o prato mais famoso da cidade, segundo Hazan. Originalmente, o livro foi publicado nos EUA na década de 1970, e hoje traz mais de 500 receitas. No Brasil, a edição é de 2013, da Martins Fontes.
Nascida na Emilia-Romagna em 1924, Hazan se graduou duplamente em biologia e em ciências naturais na Universidade de Pádua e na de Ferrara e chegou a trabalhar como professora de ciências na Itália. Em 1955, casou-se com Victor Hazan, italiano de nascença mas que cresceu em Nova York, e meses depois mudou-se para os Estados Unidos, onde resolveu que se dedicaria a cozinhar, algo que seria uma novidade, já que na Itália ela não era exatamente próxima do fogão.
No obituário do New York Times, Mark Bittman conta que sua aptidão era natural e foi notada pelos colegas do primeiro curso de culinária, focado na cozinha chinesa. Quando terminou o programa, pediram que ela ensinasse pratos italianos. O resto é história: foi o que fez até o fim da vida, com livros e cursos, textos e vídeos. “O que Alice Waters fez pelos restaurantes, Marcella Hazan fez por cozinheiros caseiros, demonstrando que o tratamento simples para ingredientes decentes é capaz de levar a pratos maravilhosos”, escreveu Bittman.
Onze anos depois de sua morte, sinto que virei sua discípula. Com ela aprendi que a refeição italiana raramente tem um prato principal (salvo casos em que o ossobuco e o risoto milanês são servidos juntos), mas é feita de uma sucessão de pequenos pratos servidos um após o outro, transformando a mesa em uma festa. Se pensarmos bem na experiência vivida nos restaurantes mais gastronômicos hoje em dia, dá para dizer que é a tradição italiana que eles têm seguido, por mais que os pratos possam vir de outras regiões do mundo. É comum que sejamos orientados a pedir pequenos pratos para que sejam compartilhados e uma berinjela ou uma couve-flor pode ter a mesma importância que um peixe ou uma carne.
O que ela ensina é que devemos cozinhar um legume do jeito mais eficiente para alcançar o máximo de seu sabor. Não é transformar, é ressaltar
Nos fundamentos que Hazan deixou para o mundo, vemos também o valor do ingrediente. O que ela ensina é que devemos cozinhar um legume, por exemplo, do jeito mais eficiente para alcançar o máximo de seu sabor, aproveitando o que ele efetivamente tem para dar, sem inventar demais, sem maquiá-lo. Não é transformar, é ressaltar. Isso, talvez, seja um pouco diferente do que temos visto por aí em restaurantes de alta gastronomia, considerando a profusão de processos em cada prato. Para a cozinha de casa, no entanto, não vejo ideia melhor do que deixar que cada ingrediente brilhe, sem complicar demais.
É também interessante voltar ao básico, refazer pela milésima vez uma receita difundida mundo afora, como é o caso do carbonara, um prato simples mas que desperta paixões terríveis. Lembro do caso em que a apresentadora de TV inglesa Nigella o preparou com creme de leite e foi quase excomungada. A versão de Hazan é a clássica e não leva sal no molho, apenas no cozimento da massa. Achei que podia ser um erro da edição do livro. Mas, ao provar, entendi que dessa forma sentimos muito mais os ingredientes e o sal da pancetta e do parmesão contrasta com a doçura da massa, num combo muito mais harmonioso e delicado do que eu já tinha experimentado.
(Outro truque maravilhoso que ela ensina neste prato é o de usar dois dentes de alho inteiros para perfumar o azeite que será usado para fritar a pancetta. Os dentes de alho são descartados antes da pancetta entrar e, quando está no ponto, vinho branco é adicionado. O perfume é algo realmente celestial.)
Mas seu prato mais comentado e célebre é justamente o molho de tomate. Feito com um quilo de tomates frescos ou duas xícaras de tomates em lata, recebe 5 colheres generosas de manteiga e uma cebola média descascada e partida ao meio, além de sal a gosto. Tudo vai à panela em fogo baixo por 45 minutos e, ao final, descarta-se a cebola. É, talvez, o molho mais aparentemente esquisito e divino que existe.
É por esses exemplos que, com Hazan, tenho pensado mais em comfort food, um conceito que pode ser polêmico. Semanticamente, faz total sentido se sentir reconfortado por uma comida que é quentinha, gostosa, preenche o estômago, traz recordações consoladoras do passado (no meu caso, macarrão com molho de tomate foi o primeiro prato que eu cozinhei, aos 8 anos, ainda que não tenha sido essa receita).
Culturalmente, no entanto, o termo é problemático, como afirmou a escritora Rita Lobo nesta entrevista a Gama, em que diz que o conceito é importado de um lugar (os EUA) onde não há um padrão alimentar. “Nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, não existe uma dieta tradicional (…) E, lá, o comfort food tem a ver com aquela comida que a mãe fazia uma vez por semana, fosse a lasanha, fosse outra coisa”, afirma. Mas, veja, curiosamente, o exemplo que ela dá é justamente de um prato italiano.
Por mais que concorde com Lobo, na prática penso que aquele macarrão que eu fiz aos 8 anos era o embrião de uma família de comidas que me dão conforto e que eu quero que estejam ao meu lado em momentos difíceis, mas também nos prazerosos, nos que quero reunir amigos ou família. E, para isso, descobri uma grande mestra com tanto para ensinar: em suas 500 receitas e nos outros textos de apoio, há instruções para uma vida inteira na cozinha.
- Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica
- Marcella Hazan (trad.: Jefferson Luiz Camargo)
- Ed. Martins Fontes
- 698 páginas
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Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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