Marcelo Knobel
Ciência e educação em redes sociais: o bom, o mau e o feio
Uma parcela significativa dos vídeos que se apresentam como sérios, na realidade, propagam notícias falsas e até negacionismo científico
Ultimamente tenho discutido bastante sobre a importância crucial da comunicação efetiva nas áreas em que atuo, ou seja, em ciência, tecnologia e educação superior. Penso que aprimorar a boa comunicação dos consensos científicos e da importância da educação é um assunto fundamental na sociedade contemporânea de modo geral. Entretanto, acredito que muitos setores ainda não se deram conta das imensas mudanças que estamos vivendo, principalmente na forma de produzir e consumir conteúdos, hoje tão fortemente afetada pelo avanço nas tecnologias de informação, incluindo as redes sociais e a inteligência artificial. Acompanhamos diariamente “notícias”, verdadeiras ou falsas, se alastrando num piscar de olhos. As chamadas “desordens de informação” são capazes de influenciar eleições, amplificar o número de vítimas em uma pandemia e causar retrocessos absurdos na saúde pública e nas ações de sustentabilidade ambiental, por exemplo.
Citemos o caso do YouTube, do Google. O YouTube foi lançado em 2005 como uma plataforma para compartilhar vídeos de diversos tipos criados pelos usuários. Cresceu rapidamente e, menos de um ano após o lançamento, já tinha 100 milhões de visualizações e mais de 65 mil uploads por dia. Há quatro anos (o dado mais recente que encontrei), mais de 500 horas de vídeo eram subidas ao YouTube a cada minuto, mais de 20 vezes mais que em 2010. A sacada da plataforma foi incorporar publicidade aos vídeos e pagar aos criadores de conteúdo uma minúscula fração dessa publicidade, o que, em casos de sucesso, gera pagamentos expressivos. Nos últimos quatro meses de 2022, o faturamento do YouTube em publicidade chegou a mais de US$ 7 bilhões. Visando aumentar a renda, os criadores de conteúdo começaram a se profissionalizar cada vez mais. Hoje, a plataforma reúne o que há de melhor e de pior na internet mundial. Como o tal algoritmo vai sugerindo canais e conteúdos sempre similares ao que cada pessoa demonstra gostar de assistir, formam-se verdadeiras bolhas, onde um usuário pode jamais sequer saber da existência de conteúdos com pontos de vista diferentes ou até opostos. Além disso, surgiram as celebridades do YouTube, influenciadores digitais que mantém o contato frequente com os fãs, lucram com parcerias promocionais e expandem suas atividades para outros meios de comunicação.
Segundo o ranking divulgado em fevereiro de 2024 o canal com mais inscritos do mundo é o da rede de música indiana T-Series, com 259 milhões de usuários. Em segundo lugar está o canal do MrBeast (237 milhões), que gerou US$ 54 milhões em 2021, sendo o primeiro do ranking de ganhos por YouTubers. O ranking tem ainda algumas crianças, como a Anastasia Radzinskaya, conhecida como Nastya, que com apenas seis anos de idade em 2020, ganhou US$ 28 milhões (sexto lugar). Outro fenômeno é o Ryan Kaji do Canal Ryan´s World (antes chamado de ToysReview), que iniciou a carreira de YouTuber com três anos de idade abrindo caixas de brinquedo em seu canal. O público infantil é um forte filão para o YouTube, e está cada vez mais presente na vida das famílias. Há muitos anos o vídeo mais acessado no YouTube é o famoso “Baby Shark”, que foi publicado pela rede educacional Coreana Pinkfong em junho de 2016. Em fevereiro de 2024 esse vídeo já tinha sido visto quase 14 bilhões de vezes!
Para se ter uma ideia do tamanho do disparate, há quem diga que veículos elétricos criam três vezes mais emissões que os carros a combustão
O Brasil segue essa tendência mundial, com os maiores canais relacionados com entretenimento, música e programas infantis. No país, a plataforma criou uma página específica voltada para a educação, o YouTube Edu, que tive a felicidade de ajudar a criar. O YouTube Edu contém vídeos voltados ao apoio à aprendizagem escolar e nasceu com uma parceria com a Fundação Lemann, e a nova versão é resultado de uma cooperação entre YouTube e Unesco no Brasil. A plataforma tem milhares de vídeos organizados em playlists, com conteúdo dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio alinhado à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Também há listas sobre os temas transversais, as competências gerais da BNCC e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O diferencial é que todos os vídeos passam por um processo de seleção, que envolve critérios técnicos e pedagógicos, aspectos de diversidade e reconhecimento do trabalho dos chamados “EduTubers”. Uma notícia boa é que há diversos professores que se tornaram verdadeiras celebridades, como o Professor de Português Noslen (quase 5 milhões de inscritos), o Professor de Biologia Jubilut (3,5 milhões de inscritos), a Professora de redação Pamba (2,5 milhões de inscritos), entre tantos outros. Um fenômeno similar ocorre na área de divulgação da ciência, onde surgiram diversos canais que têm grande aceitação, principalmente entre os jovens. Alguns exemplos incluem, entre outros, o Atila Iamarino (1,6 milhões de inscritos), Ciência todo dia, do Pedro Loos (quase 5 milhões de inscritos), Olá Ciência, do Lucas Zanandrez (2 milhões de inscritos), e o já clássico “Manual do Mundo”, do Iberê Thenório, que tem 18,5 milhões de inscritos. Além dos YouTubers há muitos influenciadores científicos e educacionais que atuam em outras plataformas, trazendo novas ideias e perfis interessantes para diferentes públicos.
Mas a área de divulgação da ciência das redes sociais enfrenta muitos desafios. Há diversos estudos que mostram que uma parcela significativa dos vídeos que se apresentam como sérios, na realidade, propagam notícias falsas e até negacionismo científico. Vou ilustrar com o estudo recente da ONG Center for Countering Digital Hate (Centro para defesa contra o ódio digital, CCDH), que usou inteligência artificial para analisar as transcrições de mais de 12 mil vídeos do YouTube dos últimos seis anos relacionados com a questão do clima. O estudo concluiu que aproximadamente 70% das afirmações divulgadas em 2023 negavam os impactos humanos nas mudanças climáticas ou afirmavam que simplesmente não existiam. O estudo notou que existe uma mudança de discurso, que os autores denominaram “novo negacionismo”. Esse discurso inclui afirmações de que os impactos das mudanças climáticas são nulos ou até benéficos, ataques à confiabilidade da comunidade e da pesquisa científica, e argumentos que desencorajam mudanças para formas mais limpas de energia. Há vídeos contra energia eólica, energia solar, veículos elétricos e outras tecnologias “verdes”. Para se ter uma ideia do tamanho do disparate, há quem diga que veículos elétricos criam três vezes mais emissões que os carros a combustão ou que a transição para a energia eólica vai devastar florestas e habitats naturais, e que energias renováveis levarão a blecautes. O estudo também estimou que, apenas considerando os os 96 canais analisados em seis anos, o YouTube lucrou em torno de US$ 13,4 milhões por ano. É pouco para o Youtube, mas tem poder de levar a consequências desastrosas para o planeta, dada a gravidade das desinformações.
A velocidade com que novos discursos negacionistas são criados é muito mais rápida do que as ações para combatê-los
Em outubro de 2021, o Google já havia modificado as políticas de monetização, que em princípio proibiam publicidade (e a consequente monetização) para conteúdos contrários a consensos científicos bem estabelecidos, incluindo as mudanças climáticas. Entretanto, uma investigação de 2023, realizada pelo CCDH e pelo Climate Action Against Disinformation (CAAD), identificou pelo menos 200 exemplos de vídeos do YouTube que continham informações falsas sobre o clima, demonstrando que as próprias políticas da corporação não têm sido cumpridas. Esse relatório mais recente mostra com clareza que é necessária uma ação mais contundente para combater a desinformação climática. Pelo jeito, as políticas foram eficientes em barrar o discurso negacionista “antigo”, mas a velocidade com que novos discursos negacionistas são criados é muito mais rápida do que as ações para combatê-los, mantendo viva a onda de negacionismo e desinformação.
Sempre que tenho oportunidade em alguma palestra, mesa redonda, ou mesmo em aulas, tento fazer uma provocação: Por que as universidades (no mundo todo) não conseguem atingir tantos seguidores, mesmo muitas vezes tendo sido parte fundamental na vida de milhares de pessoas? Certamente não é pelo conteúdo, pois há inúmeros exemplos de canais e influenciadores digitais que focam em ciência e educação. Talvez uma possível resposta seja que essas instituições não estão conseguindo alcançar a velocidade de mudanças na linguagem de comunicação, tão necessárias neste mundo em transformação acelerada. No entanto, elas deveriam perseguir esse objetivo, não só para a própria sobrevivência, mas também para contribuir ainda mais no combate ao negacionismo e à desinformação, que infelizmente imperam no ciberespaço.
Para referência: THE NEW CLIMATE DENIAL
How social media platforms and content producers profit by spreading new forms of climate denial
Youtube’s climate denial dollars
Marcelo Knobel Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.