A fala desastrosa de Lula e dois desafios importantes para judias e judeus brasileiros
Os eleitores judeus de Lula não querem mais atenção e cuidado do que os demais. Mas não merecem tanto descaso
No último fim de semana, o Presidente Lula estava em Adis Abeba, Etiópia, para a Cúpula da União Africana. Lula sempre foi bastante vocal a respeito do status prioritário das relações com o continente africano para a política externa no Brasil sob sua batuta. Priorizar tais relações é um gesto coerente, justo e muito necessário. Inclusive, a esperança de que Lula assim o faria foi o que levou um número relevante de judias e judeus às urnas para apertar o 13 e confirmar seu voto. Em Adis Abeba, o Presidente respondeu uma pergunta sobre a decisão do Brasil de seguir doando recursos para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Médio — tema de máxima importância. Lamentavelmente, o assunto tomou outro rumo.
A fala desastrada do Presidente escancarou dois desafios importantes para judias e judeus brasileiros e para todo o campo progressista. Desafios latentes que Lula tornou manifestos em Adis Abeba. Lula fez paralelos do que se passa em Gaza com o Holocausto, mencionou Adolf Hitler de modo insensível que beirou o jocoso e deixou mareados judias e judeus progressistas que votaram no Presidente Lula.
Não é a primeira vez que o Presidente Lula dá declarações polêmicas sobre os atos terroristas praticados pelo Hamas e a guerra que seguiu a tragédia. Mas dessa vez foi diferente; foi pior. Primeiro porque Lula já havia se pronunciado anteriormente sobre esses temas e adquiriu certa consciência de que falar do que se passa em Gaza e adicionar à mistura referências ao Holocausto só podia dar ruim. Além disso, o calendário importa. Falas pouco cautelosas passíveis de melhoria proferidas a quente, em outubro de 2023 [quando aconteceu o ataque do Hamas a Israel], diferem-se muitíssimo de declarações igualmente descuidadas, recheadas de menções explícitas a nomes que rasgam os tímpanos de boa parte dos eleitores do Presidente feitas hoje.
Os brasileiros, judeus e não judeus, sabem menos do que deveriam saber sobre o Holocausto
As declarações de Lula e as reações que geraram e ainda geram sugerem que há dois desafios maiúsculos diante de nós, encapsulados no que foi dito em Adis Abeba. O primeiro desafio diz respeito às insuficiências das interpretações de Brasília sobre o eleitorado judeu de Lula — sua importância, os riscos que decidiram tomar para ver Lula no poder novamente e o cuidado que merecem. O segundo, transcende a figura do Presidente e escancara algo que merece atenção urgente: os brasileiros, judeus e não-judeus, sabem menos do que deveriam saber sobre o Holocausto. São desafios que se apresentam imbricados e merecem estar na ordem do dia.
Sobre as judias e judeus que votaram em Lula, há muito o que se dizer. O filósofo Peter Pál Pelbart diz em seu belíssimo ensaio “Ser Judeu no Brasil, um Relato Pessoal” publicado pela Conib en agosto de 2023 (antes, portanto, dos ataques de 7 de outubro de 2023) que judias e judeus progressistas brasileiros são experts na arte da convivência pacífica com o diferente. O diverso lhes soa encantador, estimulante. Interessante. São indivíduos que sabem que a coexistência depende, em todo canto e a todo tempo, de um esforço genuíno pelo entendimento e de um compromisso inabalável com a paz. Para que mundos diferentes possam se cruzar sem atrito, pessoas diferentes precisam se deixar afetar. Os atravessamentos podem fazer do inimigo um vizinho. A falta deles faz, certamente, vizinhos virarem inimigos. Os atravessamentos são a matéria prima da paz.
O apelo que Peter Pál Pelbart faz a judias e judeus progressistas brasileiros é simples: conheçam sua história, encontrem em vocês a sua melhor versão — aquela que é fruto de utopias comunitárias e da habilidade ímpar de se reinventar em cada porto lolle, a cada papo com alguém novo e diferente. E naveguem pelas duras escolhas éticas e políticas do nosso tempo levando tudo isso na cabeça e no peito.
Judias e judeus que se comovem ao ler Peter Pál Pelbart são do tipo que também se comovem ao ver seu Presidente girar a África. São do tipo que lutam bravamente pela nossa democracia e também pela democracia em Israel, rejeitando o fascismo sob quaisquer vestes. São do tipo que acusaram Bolsonaro de fascista, talvez pela primeira vez, em uma manifestação diante de seus parentes e amigos na frente de um Clube Judaico. São essas as judias e os judeus que trabalharam e seguem trabalhando incansavelmente para que a extrema direita brasileira não seduza parte significativa da comunidade judaica do país. Tragicamente, são também essas judias e judeus que se sentem desamparados quando o Presidente Lula compara as ações do Estado de Israel com o Holocausto e fala em Hitler sem cerimônia.
Uma parte importante da comunidade judaica brasileira está em carne viva. Exausta da luta que vem travando ao lado dos demais progressistas brasileiros, uma briga que não dá sossego. Agoniada com cada notícia que chega do front. E, agora, indignada diante do conteúdo e do tom que o Presidente Lula adotou na Etiópia. A poeta feminista norte-americana de origem judaica Adrienne Rich, em um poema de amor, escreveu o verso “me sinto mais desamparada com você ao meu lado do que sem você”. O Presidente Lula precisa tratar seu eleitorado judeu com a mesma deferência que trata todos os demais. Queremos que Lula escute seu eleitorado judeu como escuta as periferias do país, queremos dele o mesmo entusiasmo que ele carrega nos olhos quando viaja o Nordeste. Na imprensa, fala-se da necessidade de um pedido de desculpas de Lula a Israel. Mais importante seria um gesto de respeito destinado às judias e judeus brasileiros.
Falar pouco sobre o Holocausto pode contribuir para que nossos tomadores de decisão falem desse assunto tão sensível de maneira infeliz
Os eleitores judeus de Lula não querem mais atenção e cuidado do que os demais. Mas não merecem tanto descaso. Esse é o primeiro desafio que as palavras e o tom de Lula em Adis Abeba nos permitem enxergar.
Quanto ao segundo desafio, precisamos encarar: sabemos, no Brasil de hoje, menos do que deveríamos sobre o Holocausto. Há razões de toda sorte que explicam o desejo de judias e judeus de evitar comparações inadvertidas a todo custo e zelar para que tratemos o Holocausto com o devido exepcionalismo. Contudo, essa atitude perfeitamente compreensível pode resultar no avesso do que se deseja e interditar conversas formativas duras, porém essenciais. Conversas que podem elevar a qualidade do debate público sobre paz, justiça e segurança. Ninguém quer banalizar o Holocausto. Mas precisam reconhecer: falar pouco sobre o tema e investir pouco no letramento de nossas lideranças pode contribuir para que nossos tomadores de decisão inadvertidamente falem desse assunto de maneira infeliz.
Manoela Miklos é diretora executiva do IBI (Instituto Brasil Israel).
Michel Gherman é professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de “O Não Judeu Judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo” (Fósforo).
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