Coluna da Fabiana Moraes: Todo poder à praia: farofar à beira-mar é revolução — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

Todo poder à praia: farofar à beira-mar é revolução

Me despeço das férias trazendo a minha história com o mar e reiterando uma certeza: levar sua comida para a orla é um elogio à autonomia e uma banana ao desprezo contra a pobreza

31 de Janeiro de 2024
Meu almoço em um pote de plástico à beira-mar: uma das coisas mais chiques do mundo
Meu almoço em um pote de plástico à beira-mar: uma das coisas mais chiques do mundo
Arquivo pessoal

Tem uma cena no documentário “Um Lugar ao Sol” (2009), filme de Gabriel Mascaro com entrevistas de moradoras e moradores de coberturas, que sempre volta à minha cabeça. Nela, um jovem recifense fala, do alto de um dos prédios mais altos de Boa Viagem, suas impressões a respeito da famosa praia pernambucana. Ele conta que há muito prefere não o mar, mas o isolamento da piscina no teto do prédio. As razões: sujeira, tubarões e aglomeração de pessoas. Mas o local, veja só, ainda oferece alguma serventia para o rapaz: da sua cobertura, ele diz que fica “entretido vendo aquelas famílias com dez pessoas chegando, carregando cadeira, mesa”.

Durante anos, eu, minhas irmãs, meu irmão, minha madrasta e meu pai — éramos oito, no total — saíamos do morro aos domingos e, após esperar longamente por dois ônibus, colocávamos nossos pés escuros na areia branquinha de Boa Viagem. Nosso almoço estava bem guardado em embalagens reutilizadas de margarina, dentro de alguma sacola. Um pote para cada pessoa.

Éramos a perfeita tradução dos farofeiros, termo que se notabilizou no país para indicar esse povo que leva galeto e farinha para a beira-mar e que, eventualmente, também diverte, sem saber, os moradores de coberturas e afins.

Em uma nação que odeia e ridiculariza frequentemente a pobreza, “farofeiro” nasce como sinônimo de ser pobre, um termo estigmatizador, indicando uma gente tanto sem grana quanto “sem modos”. Mas, como vimos no caso do mais novo ex-presidente do Brasil, o Derrotado, milhões de nós não só toleram, mas celebram, a falta de educação: o problema é quando ela se localiza em quem não tem barco, lancha, jóias ou títulos como os de juiz e presidente.

O filme de Mascaro e a verdadeira expedição que minha família realizava entre o morro e a praia na década de 1980 voltaram diversas vezes à minha memória nas duas primeiras semanas do janeiro que se encerra. Estava de férias no litoral norte de Alagoas (infelizmente, cada vez mais devastado). Lá, nesse período, dou continuidade ao projeto da minha família: arrumo uma sacola, coloco comida em um pote, umas cervejas no cooler. Pego um livro e parto para a praia. Vou para a sombra dos coqueiros que me livram, graças à Iemanjá, do trambolho do guarda-sol.

Me dói que tantas vezes mesmo as pessoas mais carentes assimilem esse preconceito, um certo ódio contra si

É sem dúvida uma das combinações mais sofisticadas do mundo: o mar de Japaratinga, a sombra de um coqueiro, uma toalha na areia, a própria comida e bebida compartilhadas com amigas e amigos. É uma delicada e festiva farofa, um pequeno oásis de autonomia, uma belíssima banana para o estigma dessa “coisa de pobre”. Me dói que tantas vezes mesmo as pessoas mais carentes assimilem esse preconceito, um certo ódio contra si. Coisas de um país que tantas vezes confunde civilização e modernidade com arrancar uma árvore do quintal para cobri-lo com porcelanato.

Essa alegria, essa sofisticação, me levam automaticamente para a Boa Viagem dos anos 1980. A sensação de chegar finalmente à praia e saber que ela era total e irrestritamente também nossa. De fora, podíamos até divertir gente mais rica com nossos hábitos “pitorescos”, “engraçados”. Mas, de dentro, não havia entre nós qualquer absorção desse olhar externo e exotificante sobre nosso grupo — e essa assimilação não só nos protege, mas ainda indica nossa não subserviência ao olhar do outro. O nome disso é poder.

Era maravilhoso, depois de algumas horas no mar – que aproveitávamos sem medo de tubarões — sair após ouvir o chamado da minha madrasta, Ciça. Tinha chegado a hora de almoçar. Nossa base ficava sob um pé de coração-de-nego, nome mais bonito do que amendoeira-de-praia, sete copas, castanheira de praia, castanhola, seus sinônimos. Sentávamos nas toalhas e recebíamos cada um nossos potes plásticos de margarina, todos cheios de feijão, farinha, arroz, macarrão e a galinha cabidela mais gostosa do mundo. Ali, ao lado da minha família, com o corpo salgado e bem alimentado, em frente ao mar, eu era a menina mais feliz do mundo.

Adolescendo, comecei a ter consciência das diferenças entre nós, com nossas comidas em grandes sacolas, e quem estava sob um guarda-sol comendo cachorro quente e tomando, sozinho, uma Coca-cola: nós dividíamos uma para cada dupla de filhas. Um refrigerante inteiro para si era um luxo — e ainda hoje é, como mostra a menina que pediu um guaraná e um par de chinelos para o Papai Noel em 2021.

Alguma vergonha ia atravessando nossos corpos, e logo o olhar de quem nos via lá da cobertura passava a incomodar

Com o país celebrando “o novo”, íamos assimilando que nossos hábitos eram “velhos” e, portanto, ultrapassados. Alguma vergonha ia atravessando nossos corpos, e logo o olhar de quem estava nos vendo lá da cobertura passava a nos incomodar. Pior: passava muitas vezes a ser nosso olhar sobre nós mesmas também.

Hoje, entendo que íamos na verdade deixando de ser espetacularmente civilizados: usávamos o transporte público, reciclávamos o plástico (os potes de margarina iam e voltavam até se deteriorarem), não tínhamos caixas de som altíssimas que atrapalhavam o descanso de outros trabalhadores e trabalhadoras que tinham ali, em Boa Viagem, seu luxo e seu oásis. Éramos chiques demais.

Aquele pedaço de mar também era, insisto, irrestritamente nosso: ainda não tinha sido roubado, talvez para sempre, de nós. Era o espaço onde famílias chiques como a minha podiam descansar, brincar e principalmente se banhar sem medo. Os tubarões estavam lá, mas em suas próprias rotas e comendo peixes, e não matando pessoas depois de terem sido desalojados de seus espaços naturais em nome do “desenvolvimento”.

A praia de Boa Viagem foi rapidamente sequestrada, em um processo mil vezes mais agressivo que a mordida dos tubarões: sua privatização se deu por meio de empreiteiras, portos, empresários, mercado imobiliário. As centenas de altos edifícios à beira-mar, cujos apartamentos garantem a linda vista de quem tem muito dinheiro, projetam, no período da tarde, sombras que se estendem até o mar.

Cena de Um Lugar ao Sol (2009), de Gabriel Mascaro
Cena de Um Lugar ao Sol (2009), de Gabriel Mascaro
Reprodução

Eu não tenho dúvida que é um dos maiores crimes cometidos contra Recife e sua população.

Quem vai pagar pelo roubo dessa praia?

Eu, minhas irmãs e meu irmão — dormíamos no mesmo quarto ocupado por dois beliches — mal conseguíamos fechar os olhos na noite anterior ao piquenique sob os corações-de-nego. Acordávamos muito cedo para começar a expedição organizada pelo meu pai, José, mas principalmente por Ciça, minha madrasta-mãe. Era ela que cozinhava e organizava toda refeição. Já painho ficava no comando da contagem dos filhos nas subidas e descidas dos ônibus. Ela e ele nos vigiavam enquanto estávamos no mar.

Fico pensando hoje, quando crianças que vivem nas periferias (mas não só) vão até Boa Viagem somente para olhar, mas não para se banhar no mar, se resignando a ficar em uma das tantas piscininhas plásticas que podem ser alugadas ali, um novo negócio que ganhou força após o perigo dos tubarões. Nos anos 80, eu, Pat, Flávia, Adriana e Quinho, assim como Flávio, tivemos a sorte de correr para a água com apenas um medo: o da hora de ir embora.

Escrevo isso sentindo o cheiro da maresia que eu levava comigo até a hora de ir dormir no quarto com dois beliches, em nossa casa no Alto José Bonifácio. A felicidade de ter ido à praia, da nossa farofa familiar sob uma árvore, do sentimento de liberdade do qual fazia parte ignorar o olhar externo sobre nós, reverbera forte até hoje.

Poucas coisas são tão festivas como uma farofa na praia

Poucas coisas são tão festivas como uma farofa na praia. Poucas coisas são mais bonitas do que Negros na piscina. Poucas coisas são mais evidentes do que saber que nosso desenvolvimento não se dá por meio de toneladas de concreto e vidro verde, mas pela convivência bem menos predatória com o meio-ambiente.

Paulo Nazareth, NEGROS NA PISCINA, 2014
Paulo Nazareth, NEGROS NA PISCINA, 2014
Reprodução

Todo poder à praia, como um dia conclamou o coletivo carioca Opavivará. Boiar no mar é de graça, como já disse Karina Buhr. Mas infelizmente já não podemos mais flutuar nas águas de Boa Viagem.

Vale perguntar de novo: quem vai pagar pelo roubo dessa praia?

PS: O Movimento Ocupe Estelita se reuniu para marcar os dez anos das ocupações. O grupo continua ativo e se movimentando contra a gentrificação da cidade. Enquanto isso, a construtora Moura Dubeux ergueu três prédios na área — outros dez ainda serão erguidos — garantindo, mais uma vez, a vista privilegiada para quem pode pagar.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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