Coluna da Vanessa Rozan: Paradoxos a oferecer — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Paradoxos a oferecer

Quem espera uma vida bidimensional da mulher só pode estar julgando de fora, sem analisar seus próprios atos

18 de Outubro de 2023

Antes de ter a cabeça cortada — quase junto com Maria Antonieta — Olympe de Gouges escreveu que nós mulheres só temos paradoxos a oferecer.

Quem espera uma vida bidimensional da mulher só pode estar julgando de fora, sem analisar seus próprios atos. Sobre esse tema, recomendo fortemente o incrível documentário “Brainwashed:Sex-Camera-Power”, de Nina Menkes, disponível até fevereiro de 2024 de forma gratuita e online no site do Sesc Digital. O filme fala sobre a construção do papel da mulher no cinema e como câmera, luz, ângulo e tempo foram, ao longo de um século, fazendo de nós mero objeto a ser observado. Mostra como a imagem do cinema nos tira a possibilidade de sermos sujeitos.

Sem dar spoleirs, essa construção de inúmeras imagens retiradas dos filmes clássicos e contemporâneos nos coloca como objetos pinçados para fora do tempo-espaço, sem a possibilidade de termos experiências subjetivas. Nossa luz é sempre a da beleza, de frente, o que faz com que nossos rostos sempre estejam lisos. Não envelhecemos, nem enfrentamos conflitos, questionamentos, dúvidas. E mais: não vivemos uma vida que possui inúmeros prismas, como um grande mosaico de pedaços sobrepostos ao mesmo tempo, e que a cada feixe de luz, um desenho, uma cor ou um jeito de pensar se revela, inclusive dicotômico do último desenho e cor revelados no segundo anterior.

Não somos objetos de duas dimensões e, sim, somos paradoxais. Um exemplo disso é o fato de muitas mulheres terem desejado ser mães, amarem seus filhos e, ao mesmo tempo, se arrependerem em um microssegundo dessa decisão — às vezes, de forma secreta sob pena de trair o ideal de mãe perfeita.

Eu, por exemplo, trabalho na indústria da beleza, que, de forma generalizante, dedica-se a vender produtos de beleza para mulheres como eu. Quando comecei a maquiar, fui buscar na academia uma resposta para muitas inquietações. Por que essa modelo de 18 anos está numa sessão de fotos de maquiagem para inspirar mulheres de mais de 35 anos – que são as leitoras verdadeiras desse veículo – a consumir as tendências de beleza da próxima temporada?

Terei sentimentos confusos a respeito da minha aparência ao longo da vida porque há uma baita força para que eu me sinta inadequada

Estou sempre em busca de entender o mecanismo que opera por trás disso ao mesmo tempo que sou atravessada por ele. O que significa que terei sentimentos confusos a respeito do meu corpo e da minha aparência ao longo da vida, porque existe uma baita força para que eu me sinta inadequada em algum lugar. Graças às deusas que essa confusão leva à muita análise e a pencas de leituras também. E também pede tempo e distanciamento para fazer nossas reflexões.

Eu não sou a pessoa mais certa pra pregar a palavra da liberdade dos padrões, não. Vivo e pago boletos trabalhando dentro da indústria da beleza. Mas, como sujeito e mulher, sinto o ímpeto em questionar cada vez mais. É batalha perdida, tipo enxugar gelo. Posso falar de como surgiu o termo anti-ageing e que ele é uma grande falácia pois o anti-envelhecimento é impossível; mas vou correr pra testar um novo lançamento que me diz exatamente que é isso que ele faz. Aliás, quando eu escrevo sobre os padrões de beleza, nunca acredito estar livre deles, porque estou dentro dessa piscina de merda assim como tantas outras mulheres. Em algum momento ou a partir de alguma fragilidade, eu vou ceder à indústria. E TUDO BEM.

Nenhuma mulher precisa ser bidimensional e reta como uma linha em todas as suas decisões

Entendi que a mulher, se pintar o cabelo ou não pintar, se engordar ou emagrecer, se fizer toxina ou não fizer, não importa, será criticada. E, com alguma surpresa, as críticas virão de outras mulheres. Eu realmente gostaria de acreditar que algumas de nós saíram da piscina e podem sinalizar, de forma educativa, um jeito de como se livrar disso tudo. Infelizmente, muitas vezes o que se vê são falas que relacionam de forma indireta suas próprias dores com as decisões do outro da forma mais agressiva possível, porque é na dicotomia do outro que nós nos vemos — e isso nem é gostoso de ver.

Nenhuma mulher precisa ser bidimensional e reta como uma linha em todas as suas decisões, ou em todos os campos, porque essa mulher não existe. Ela é uma invenção de como nossa imagem social foi construída e da construção do papel social da mulher. Ao saber disso, fica bem mais fácil analisar decisões do passado e contextualizá-las.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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