Um terroir em processo de lapidação — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Um terroir em processo de lapidação

Chapada Diamantina leva suas primeiras garrafas de vinho ao mercado e mostra tintos curiosamente salinos e espumantes com notas de caramelo perfeito

10 de Outubro de 2023

Como é que nasce um terroir? Essa palavra francesa tão ampla em seu sentido, que reúne a geografia, a geologia, o ambiente, a história, a cultura e a ação humana em um lugar, não tem tradução mais precisa para o português, mas pode estar em todos os lugares do mundo, como no interior do Brasil. Diante dos meus olhos, nariz e boca, há poucos meses, comprovei a gênese de um terroir por aqui. Não que eu estivesse diante de uma nova formação de solo e rochas, mas sorvi a reinterpretação de um lugar na forma de vinho.

A Chapada Diamantina, meca do turismo de aventura e ecológico no centro da Bahia, não é exatamente o que se tem na cabeça quando falamos em produção da bebida. Fica acima das latitudes 30º e 50º, onde fica a maior produção dela tanto no Hemisfério Norte quanto no Sul — mais precisamente entre o 11º e o 13º. Na história, a chapada carrega também o peso de ter sido uma região marcada pelo garimpo, com todos os problemas que a atividade é capaz de trazer.

Rafael Martins

Há pouco mais de dez anos, no entanto, o mapa vitivinícola da região começou a ser desenhado. Tudo começou com a visita de uma comissão francesa de pesquisadores de Bordeaux e de Champagne, que percebeu que a altitude de 1.150 m e a amplitude térmica com dias secos e ensolarados e noites frescas poderiam ser uma bênção para a maturação de uvas.

No Brasil, há uma máxima que diz que onde se faz café também se faz vinho

Fabiano Borré, cuja família gaúcha das Missões emigrou em busca de terras para cultivar na década de 1980 e fundou em Mucugê, a 260 km de Vitória da Conquista, a Fazenda Progresso, se animou. Até então, o negócio da família era principalmente as culturas de batata orgânica e café especial (exportado hoje para as principais cafeterias do globo, dos EUA ao Japão). Isso talvez já fosse um sinal, afinal, nas últimas décadas no Brasil, há uma máxima que diz que, onde se faz café, também se faz vinho.

Voltando ainda alguns anos nessa história, chegamos ao responsável dessa proximidade entre café e vinho, um engenheiro agrônomo chamado Murillo de Albuquerque Regina, com formação na França, que trouxe ao Brasil no início dos anos 2000 a técnica da poda invertida para o Sudeste. Pelo método de Regina, a videira é “enganada” para que seu ciclo seja alterado. Em vez de colher as uvas no verão, quando as chuvas são intensas, há risco de fungos e a fruta pode ficar diluída, colhe-se no inverno, quando há tempo seco e sol para maturar bem a uva, além de noites frescas, que favorecem sua acidez.

Apenas um ano depois da visita dos franceses, com certa “ousadia cautelosa”, Fabiano Borré começou a plantar as primeiras vinhas experimentais de Cabernet Sauvignon. Ano a ano, aumentava a área e as variedades plantadas, até ter uvas suficientes para começar a vinificação. E é aí que vem a parte mais interessante e que explica o coquetel perfeito entre ousadia e cautela: criou uma micro vinícola, com micro tanques, para fazer testes, quase como se aquela micro adega tivesse sido desenvolvido para uma Barbie Enóloga. Depois de provar os primeiros vinhos saídos dali, teve a certeza de que sua aposta era quente.

O prédio da vinícola é minimalista para destacar a serra do Sincorá, que está a poucos quilômetros dali e que emoldura os vinhedos

Em 2018, a vinícola Uvva foi construída. O espaço usa materiais como madeira, cimento e vidro de forma minimalista para destacar a vista da serra do Sincorá, que está a poucos quilômetros dali e que emoldura os vinhedos, transformando o local também em um ponto de enoturismo. Em 2022, a vinícola foi aberta e foi posta no mercado a primeira safra comercial, a de 2019.

Isabelle Moreira Lima

Provei os vinhos e, enfim, falo do que parece oferecer esse terroir diamantino, ainda em processo de lapidação. É difícil dizer que linha em comum os une, o que esse terroir pode oferecer, mas frescor e álcool mais controlado podem ser as pistas. A começar pelos tintos, que são os mais numerosos de toda a gama da vinícola, entre os destaques há um varietal de Syrah, o Microlote 2021, que tem apenas 12,5% de álcool, muita fruta na boca, e uma mistura interessante de chocolate e pimenta, além de uma discreta nota floral. Nesta linha, há ainda varietais de Cabernet Sauvignon e de Petit Verdot.

O blend Cordel 2020 une à Syrah a Cabernet Sauvignon, Merlot e Malbec, com boa acidez e taninos macios. Um degrau acima, chegamos ao Diamã, top de linha, que traz uma interessante ponta salgada no final, que passou a ser uma constante nos outros tintos. É um corte de Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Malbec, Merlot e Petit Verdot. Seria uma homenagem aos visitantes bordaleses do começo da história?

Rafael Martins

Os brancos são apenas dois, um Sauvignon Blanc super tropical, cheio de nota de maracujá e de tomate e alguma pirazina (sabe o cheiro do pimentão?), e um Chardonnay que para mim é uma promessa. Degustei o que estava no mercado e não me apaixonei. Mas provei um segundo, ainda experimental, sem madeira, bem fresco, fino, salivante, e esse sim, me aguarde no ano que vem, querido.

Mas o vinho que conseguiu ser melhor lapidado até agora foi o espumante Uvva Extra Brut. Borré diz que não quer competir fortemente nessa área, afinal o Brasil já é forte na área das borbulhas. Na Uvva, ele programa, elas serão apenas 5% da produção. Eu apostaria que ele ainda muda de ideia porque a mescla de meio a meio de Pinot Noir e Chardonnay é deliciosa e diferente dos outros brasileiros que conheço, ao trazer uma nota de caramelo perfeito: já ouviu falar da reação de Maillard? É quando os açúcares de um alimento, um bolinho bem delícia, imagine, começam a caramelizar, mas não queimam. Foi isso que achei nesse espumante delicioso e que eu espero que você tenha chance de conhecer e de provar depois de um brinde feliz.

*A jornalista viajou a convite da vinícola Uvva

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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