Aperreio, plantas, samba e fé — Gama Revista

Diários da Quarentena

Aperreio, plantas, samba e fé

©Filipe Cordon

O combinado é a gente não morrer. Para nós, isso significa não esperar os governos agir

Jefferson Barbosa 14 de Abril de 2020

Nos alastramos em correntes cinzentas num lugar
cheio de invernos, quando o que queremos é o sol

AMIRI BARAKA

Somos continuidade de algo que vem muito antes de nós, e apesar de tudo ainda estamos aqui.

Todo o tempo em que estou acordado, trabalho. Compenso tentando dormir ao máximo, mas sempre sou interrompido por uma reunião virtual ou uma missão logo cedo. Home office para mim tem ganhado um outro sentido. A liberdade como conhecemos está sendo remodelada e provavelmente nunca mais será a mesma. A Covid-19 impôs o que nenhum outro movimento conseguiu nas sociedades: sintoma de capitalismo. Dentro de casa, a liberdade tem sido escutar os Tincoãs, Clementina, Gilberto Gil, Itamar, muito samba. Além disso, são poucas as opções de algum desanuvio nas últimas semanas, a música acaba sendo a única companhia na impossibilidade de outra.

Como um jornalista que transita sempre em lugares diferentes esta é a minha primeira grande cobertura. Mas nunca pensei que seria de dentro de casa. Ainda que as urgências de inúmeras famílias das favelas aqui do Rio nos façam agir, não dá pra fazer isso sem ir pra rua, encontrar os parceiros de luta e fazer o que chamamos de corre. Entregar uma cesta, dar uma atenção e de algum modo chegar junto de quem só pode contar com Deus ou Oxalá, a fé de que as coisas melhorem. Daí volto para o meu canto e vejo milhares de grupos e demandas que mostram que, ainda que estejamos todos num oceano, uns apelam para barquinhos, outros para iates.

Ainda que estejamos todos num oceano, uns apelam para barquinhos, outros para iates

Segundo a Casa Fluminense, só a metrópole do Rio tem 300 mil casas com três moradores no mesmo quarto. Muito fácil o Paulo Guedes pregar o rancor dele apegado aos números com a vontade de odiar do Olavo de Carvalho para pensar soluções para o povo. Quero ver debater com a Marilza, minha vizinha que é uma liderança na comunidade e que todo dia tem que dar conta de mais uma família (ou várias) sem ter o que comer. Aí que entram movimentos sociais como o Movimenta Caxias e o PerifaConnection, de onde falo.

Como um jovem negro, tanto como ativista quanto como repórter, tenho me aperreado. Estou vendo essa agonia atingir outros irmão de caminhada. Parece que de uma hora para outra centenas – e até milhares de famílias – precisam de indivíduos (ainda que coletivos) para comer, o que impôs sobre vários desses coletivos periféricos uma responsabilidade que tem o peso do mundo. A quarentena nos faz até perder o medo da melancolia: a gente tem chorado, perdido o sono, mas sem parar. E quando paramos, precisamos ser curados. Precisamos de cidades mais saudáveis, esse é o aprendizado de uma crise. As cidades estão doentes.

O governo precisa efetuar a renda básica de cidadania e, mais do que isso, transformar todas essas respostas emergenciais em políticas públicas – cura em vez de só redução dos danos. O Fome Zero e a saída do Brasil do mapa da fome são legado e tiveram impacto direto do Ação da Cidadania, do Betinho. As respostas de apoio comunitário não surgem com a pandemia. Várias dessas ideias que aparecem aqui surgiram a partir de falas de Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Flávia Oliveira e Atila Roque em uma aquilombamento virtual, versão de encontros mensais que armamos com amigos de caminhada.

Inúmeras iniciativas de solidariedade aparecem, correntes de doações de comida e materiais básicos para se prevenir da contaminação do coronavírus. É impressionante como de uma hora pra outra, autoridades que pregam o extermínio dos nossos corpos negros e periféricos – caso de Witzel e Dória -, se tornaram referências de bom senso diante da estupidez do presidente eleito pela vontade coletiva de odiar. Apenas pelo fato dos governadores do Rio e de São Paulo respeitarem minimamente a mídia e a ciência. O combinado é a gente não morrer. Para nós, isso significa não esperar os governos agirem.

Quais vidas são salvas e qual sacrificamos? As mesmas de antes dessa epidemia, pobres, negros e periféricos

O modo neoliberal de Bolsonaro e companhia, que visa somente lucro, tem sido respondido com morte. Quais vidas são salvas e qual sacrificamos? As mesmas de antes dessa epidemia, pobres, negros e periféricos. E ainda em muitos casos as mulheres também estão sendo vítimas da violência de seus companheiros dentro da convivência forçada pela quarentena. Quilombolas, ribeirinhos, indígenas e nortistas também são fortemente impactados pelo Covid-19. Quem você tem enxergado de dentro da sua casa? A gentileza do vizinho precisa atravessar os muros invisíveis da cidade e chegar onde o saneamento básico não chega, onde a dignidade é ter o pão na mesa. Em momentos como este, até isso é incerto.

O corre que fazem Raull Santiago, Rene Silva, Wesley Teixeira, Salvino Oliveira, Douglas Belchior, Jota Marques e Enderson Araújo. Aqui cito homens, principalmente homens negros, porque a narrativa sobre nós também tem que ser de vida, e não de morte como tentam impor os poderes do Brasil oficial. Ainda que o sistema imponha de certa forma o oposto, temos que zelar com os nossos corpos. Há também muitas guerreiras no front, a Buba Aguiar, a Yanne Mendes, Monique Evelle, Marcelle Decothé, entre outras.

Pelo menos nos restam coisas que me trazem um pouquinho de paz para chegar ali na frente, ver os stories do Emicida cuidando das plantinhas dele, aqueles áudios do Paulo Vieira e essa ilustração da artista Taynara Cabral, a sabedoria de Ogan Bangabala.

O futuro é algo totalmente incerto e depende de várias sementes que temos que plantar das nossas casas

O PerifaConnection surgiu há um ano, por conta do assassinato de Pedro Gonzaga, sufocado por um segurança de supermercado — racismo que faz a gente chorar e também ter a necessidade de se aquilombar. Um áudio do meu avô carregado do sotaque dos interiores da Paraíba e o “Fantástico” do dia 29 de março me fizeram chorar. Cara, o futuro é algo totalmente incerto e depende de várias sementes que temos que plantar das nossas casas.

Edson Cardoso, editor do Ìrohìn, afirma que a sociedade brasileira não foi feita de uma nota só. Há um contraponto. Qual a relação entre mudança social e debate público? O debate público é fundamental para mudanças sociais. Quanto maior a possibilidade de debater ideias, maior a chance de produzir mudanças sociais.

Nada disso é uma questão só de jornalismo, só de periferia, ou até mesmo de Brasil. O que nos propomos é a costura de futuro que escape da que está trilhada para nós. O fato que somos continuidade de um processo de resistência de séculos nos impõe autocuidado.

*Jefferson Barbosa é jornalista, integrante do coletivo Voz da Baixada e editor do PerifaConnection. Atualmente escreve um ensaio biográfico sobre as lutas de Mãe Beata de Yemanjá

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