Até que o fim da quarentena nos separe (de novo) — Gama Revista

Diários da Quarentena

Até que o fim da quarentena nos separe (de novo)

Pelo isolamento social, mas sobretudo pelos filhos, eles resolveram fazer uma coisa inimaginável: voltar a viver juntos

Isabelle Moreira Lima e Laura Capelhuchnik 09 de Maio de 2020

Aos casais separados que estão praticando o isolamento social, a guarda compartilhada é um desafio extra. A ida e vinda das crianças torna-se mais complexa quando a ideia é ficar em um único lugar. Novos arranjos têm surgido nesse contexto, até o mais inimaginável de todos: a retomada do convívio cotidiano com o ex. Gama reuniu experiências de gente que, pelos filhos, resolveu retomar a convivência com a família completa.

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    ‘Estamos fazendo uma coisa importante, positiva e preciosa para todos’

    Marisol Albano e Gerson Andrade, separados desde 2019, estão quarentenados com os três filhos na praia de Picos, em Icapuí (CE)

    “De início, fomos pegos de surpresa. Moramos em Fortaleza e estávamos separados desde outubro — o Gerson morando com os pais, que são parte do grupo de risco da Covid;  e eu com as crianças [de quatro, sete e cartorze anos de idade], na casa onde morávamos juntos antes. Minha família tem uma casa à beira-mar em Icapuí, que alugamos para turistas, e que o Gerson administra. Para nós pareceu uma opção boa passar a quarentena lá. Estávamos inseguros com o revezamento da guarda compartilhada durante o isolamento social.

    Acontece que não estávamos em harmonia na comunicação. Não convivíamos mais, apenas trocávamos palavras ao pegar ou deixar as crianças com o outro. E, ainda assim, nos desentendíamos. Havia muitas coisas mal resolvidas no nosso processo de separação, mágoas que não tinham recebido a devida atenção e cuidado.

    Ele propôs, eu resisti. Ele veio à praia primeiro com os pequenos. Precisei de uns dias para acomodar a ideia, mas segui mais tarde com o mais velho. A decisão foi tomada pelo bem dos nossos filhos, esse era o melhor lugar para eles estarem nesse momento.

    Com o passar dos dias, a gente foi conseguindo rir juntos — e chorar também. As crianças estão muito felizes, principalmente os menores, parecem aliviados em ver que os pais podem conviver, apesar de separados, de maneira tranquila, harmônica, madura. Ver isso confirmou que estamos fazendo uma coisa importante, positiva e preciosa para todos.

    O nosso filho mais velho estranhou mais. Ele ficou muito magoado com tudo o que aconteceu, mas agora o Gerson tem a chance de se aproximar mais dele. Tenho feito o trabalho de mediadora e notei que já tiveram momentos muito bons de convivência só os dois.

    Comparilhávamos muitas coisas no casamento, inclusive o trabalho. Criamos um espaço de brincadeira e sustentabilidade em Fortaleza, a Ilha Maravilha, onde também trabalhamos juntos. Quando nos separamos, eu precisava ter algo só meu. Mas agora até isso mudou; acho que ele vai poder me ajudar um pouco mais lá de novo.

    As mágoas estão se dissolvendo, estamos conseguindo perdoar. Não acho que vamos resgatar o amor do passado, é como um vaso que quebrou. Se tiver como colar, não é para agora. Mas nos entendemos, colocamos pingos nos is, organizamos nossas emoções e celebramos essa amizade, que é muito valiosa.”

    Marisol Albano

    “Desde que o vírus chegou ao Brasil, entendi que seria uma coisa muito séria. E vi que na praia estaríamos bem, as crianças à beira mar e não fechadas por quatro paredes na cidade. Sempre achei que a separação é do casal, não deve ser da família. A família segue, não pode acabar.

    No começo, a Marisol até pensou em chamar umas amigas para virem à praia também, mas eu fui bem resistente. Isso gerou discussão, seria arriscado para os nossos filhos. Mas entendo que ela queria dividir esse momento com outras pessoas.

    Sabia que essa experiência seria muito boa para nós enquanto família, especialmente por estarmos só nós mesmos e encararmos juntos essa parte dura da vida. Ficamos juntos por 14 anos, é uma trilha grande. Acredito na amizade e no companheirismo, estamos confirmando isso. Vou além e digo que é possível ser amigo e confidente do outro. Temos conversado sobre o que estamos vivendo com outras pessoas, os crushes e tal. Tem ciúme, mas não existe sentimento de posse, que é uma ilusão. Não acreditamos no formato de casamento, de família tradicional. O que eu quero é que ela esteja bem.

    A gente se conhece como ninguém, sabe da limitação, dos anseios de cada um, dos meios. Podemos contribuir sim com a vida do outro, com sugestões, e sempre com muita delicadeza.”

    Gerson Andrade

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    ‘É muita aprendizagem poder ser parceiro na hora do apocalipse’

    O relato de uma mulher em quarentena com o ex-marido, de quem se separou em 2019, e os dois filhos pequenos, em Tatuí (SP)

    “Meu ex-marido saiu de casa no final de 2019, depois de ficarmos dez anos casados. Temos dois filhos pequenos, um de três e uma de cinco anos. Até a quarentena as coisas não estavam muito fáceis, evitávamos nos encontrar, conversávamos só sobre assuntos relacionados às crianças. Havia uma distância, especialmente da parte dele.

    A gente fazia rodízio com nossos filhos antes de começar o isolamento. Nós dois somos profissionais liberais, eu atendo um dia, ele em outro, e havia um revezamento nas rotinas. Isso ia ficar complicado nessa situação, ficar trocando com tanta frequência ou ter de mudar totalmente a agenda de trabalho.

    Eu tenho uma casa em Tatuí, no interior de São Paulo. É grande, tem pomar, horta. Achei que vir para cá com as crianças nesse período seria bom, mas eu não ia dar conta de ficar com os dois sozinha. Então propus para ele que viéssemos juntos. Na hora não elaborei muito, foi algo intuitivo. Até imaginei que talvez ele não topasse o convite, e acho que tem um custo para cada um de nós estar aqui, embora esteja funcionando. Mas vir para o interior era uma ideia que fazia muito mais sentido do que ficar com as crianças no apartamento, sem natureza. Se pudermos, como adultos, ser maduros para estar juntos estando separados é melhor para todo mundo.

    É curioso porque parece que, nesses 47 dias em Tatuí, a relação vai melhor, justamente porque a gente separou. Tem parceria. E estamos aqui em nome das crianças, mas em nome da gente também, de ter natureza e mais proteção da paranoia de protocolos de limpeza, máscara, álcool gel, todo esse cenário que em São Paulo está muito difícil. A rotina é essa: a gente se reveza no trabalho, com as crianças e nos cuidados da casa, que inclusive é um trabalho que está sendo muito mais dividido do que quando éramos casados, surpreendentemente.

    As crianças estão sentindo os efeitos do confinamento, têm saudade dos avós, dos amigos da escola, mas, por outro lado, estão bem porque aqui tem espaço, plantamos coisas na horta, observamos as fases da lua e as estrelas, fazemos fogueira. Para eles tem um lado muito bom, não dá para abrir mão disso, e essa é a ideia.

    A gente veio junto com nossa cadela, que já estava velhinha e que morreu no começo da quarentena. Foi bem difícil, mas foi bom estar aqui, deu para enterrá-la, as crianças puderam se despedir, viver o ritual. Eles estão muito felizes de ver os pais juntos de novo, está sendo importante. Talvez seja difícil o depois.

    Minha filha outro dia veio me perguntar se eu ia me casar de novo [com outra pessoa]. Acho que ela está entendendo que eu não estou com o pai dela, mas que a gente está numa parceria. Então, de algum jeito, teve uma mudança importante. Mas se não fosse pela pandemia, a gente ficaria em São Paulo, cada um na sua casa.

    O maior desafio são nossas diferenças de posição: o quanto cada um quer se aproximar ou não, o quanto de intimidade e interesse tem. E também todas as questões íntimas, inclusive dos motivos do fim, que estão sendo atualizadas todo dia, toda hora.

    Faz menos de um ano que nos separamos, mas parece que passou muito tempo, porque é tudo tão profundo e intenso na quarentena que o tempo está muito relativo. No momento em que estava me separando, jamais me imaginaria dividindo a casa com ele de novo. Até porque eu estava numas de não querer morar junto com ninguém, nunca mais, pelo amor, que preguiça! Enfim, a vida é uma loucura.

    Acho que a relação muda para melhor. Para mim, pessoalmente, sempre houve um desejo de estar próxima de outro jeito, e isso na verdade já acabou acontecendo. Obviamente que a gente tem falado também da relação, do fim, de como é possível agora e não era antes. Muitas coisas estão voltando e são possíveis de ser faladas e sentidas de outro jeito. Acho que é muita aprendizagem poder ser parceiro na hora do apocalipse, estar junto, um cuidar do outro, ainda que não eroticamente.”

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