Al ku hul - Vinho tinto de sangue — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Al ku hul – Vinho tinto de sangue

O ato de brindar é como celebrar essa arma de dominação histórica usada contra os povos originários

14 de Setembro de 2023

A história do álcool como bebida é intrincadamente entrelaçada com os processos de colonização cultural e domínio econômico ao longo dos séculos. Seu uso remonta a tempos ancestrais, quando comunidades antigas descobriram técnicas de fermentação de grãos, frutas e outras substâncias para produzir bebidas alcoólicas. Essas bebidas frequentemente tinham conotações ritualísticas e cerimoniais, desempenhando um papel significativo nas práticas culturais e religiosas de várias civilizações.

A palavra álcool vem do árabe, Al Ku Hul. Os primeiros estudos científicos documentados sobre destilação datam da Idade Média, por volta do ano 800, pelo alquimista Jabir ibn Hayyan. Foi ele também quem inventou o alambique que, desde então, é utilizado para produzir destilados. À medida que civilizações entraram em contato umas com as outras por meio de rotas comerciais e explorações, o álcool começou a ser um meio de troca cultural. As bebidas frequentemente acompanhavam o comércio, a migração e a exploração, influenciando hábitos e costumes locais.

A disseminação global do álcool está ligada a processos de colonização, nos quais potências coloniais introduziam a substância nas culturas nativas, muitas vezes levando a impactos sociais desestabilizadores. A produção e comercialização da substância frequentemente beneficiava os interesses econômicos das nações colonizadoras, contribuindo para desequilíbrios no comércio internacional e perpetuando a dependência econômica de muitas regiões colonizadas, sendo sistematicamente usado como arma de controle e destruição estratégica.

Segundo um estudo publicado pela prestigiosa revista científica Lancet, o álcool é a substância mais perigosa e que mais faz mal ao usuário e a sociedade. Superando em muito o segundo lugar que é a heroína. Uma arma de destruição em massa. As divergências nas atitudes em relação à bebida hoje destacam como ela pode moldar as interações globais e influenciar a dinâmica geopolítica ao longo da história.

Hoje, na maior parte do mundo, o álcool é onipresente e aparece ao mais fácil alcance das mãos, mesmo sem ser solicitado

Tenho visitado regularmente o Oriente Médio, onde conheci pessoas interessantíssimas no campo cultural. Paradoxalmente, apesar de terem inventado o processo de destilação, nos países árabes o consumo de álcool é proibido pelo Islã, como resultado de interpretações religiosas e culturais. Essa proibição muda a forma como uma sociedade vibra e se relaciona. Ao se manterem sóbrios todo o tempo, praticamente tudo muda em como as pessoas se conectam. Com uma dimensão da razão muito mais proeminente em tudo o que se diz. Numa conversa sobre o papel do álcool e da vida social nos países árabes, ouvi de uma jovem saudita a seguinte frase que ficou ecoando em minha cabeça: “Os outros podem não saber, mas somos felizes aqui!”.

No Japão, o consumo de álcool, como o saquê, é profundamente enraizado na cultura e nas tradições sociais. Ao mesmo tempo em que as corporações mantêm um subsídio mensal para que os trabalhadores gastem em álcool. O incentivo ao consumo nesses contextos reflete a maneira como a bebida pode ser incorporada como parte de controle e válvulas de escape numa sociedade profundamente opressora. O governo japonês até lançou uma campanha para que os jovens voltassem a beber mais, quando se depararam com a queda na receita de impostos do álcool no país. Nesse caso, o próprio governo utiliza-o como forma de controle da sua população.

O abuso de álcool entre os povos nativos não é um fenômeno novo, tampouco limitado ao Brasil. Em outros países, particularmente nos Estados Unidos, Canadá e Austrália, o tema é presente em pesquisas, conferências e programas de saúde desde a década de 1960. No Brasil, ainda há uma grande lacuna no que se refere ao conhecimento sobre a realidade do consumo entre os povos indígenas, e faltam pesquisas para dimensionar adequadamente o problema.

Recentemente fui visitar a reserva indígena dos Shinnecock, na região dos Hamptons, no estado de Nova York. Essa reserva é cortada por uma estrada que conecta a região conhecida pelos preços milionários de suas mansões e que concentram o poder econômico da costa leste dos Estado Unidos. Em plena estrada, um outdoor gigantesco de quatro faces de LEDs chamava uma atenção desproporcional com seus 21 metros de altura, algo incomum no país. Nele, anúncios de vodka e de outras bebidas alcoólicas incentivam os motoristas que passam pela Sunrise Highway.

É que os Shinnecock ganharam reconhecimento federal dessa região em 2010, e utilizam outdoores eletrônicos como forma de gerar renda por meio de receita publicitária. Quando fui conversar com um líder Shinnecock ele me explicou a lógica: eles estão lutando hoje com as mesmas armas que os colonizadores lutaram contra eles, o álcool. Mais poderosa do que um rifle, uma garrafa de álcool pode ter um impacto muito mais duradouro no processo de submissão cultural. Essa lógica, aplicada no campo da publicidade de rua, soa como um soco no estômago daqueles que exerceram um enorme poder opressor e de anulação cultural sobre esses povos, proibindo suas práticas ancestrais e os embriagando.

Os habituais frequentadores dos Hamptons se sentiram ultrajados ao ver suas highways repletas de anúncios de vodka, e tentaram impedir os povos nativos de as instalarem. É um marco de uma luta por uma reconquista do protagonismo, usando as regras do colonizador ao reverso. Existe uma clara divisão entre as regiões em que o álcool é incentivado e aquelas em que é considerado inaceitável. Ele tem desempenhado um papel fundamental na processo de dominação. Hoje, na maior parte do mundo, o álcool é onipresente e aparece ao mais fácil alcance das mãos, mesmo sem ser solicitado.

Essa onipresença tem seus custos estampados no enorme dano social que causa na sociedade. Desde suas origens ancestrais, o consumo de álcool tem deixado uma marca indelével na colonização cultural e no domínio econômico. O ato de brindar é como celebrar essa arma de dominação histórica usada sobre os povos originários. Um vinho tinto de sangue.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação