Isabelle Moreira Lima
Como escrever sobre comida e falar sobre tudo
Autora de “Como Cozinhar um Lobo”, M.F.K. Fisher tinha como tema primordial a comida, mas o que ela fazia mesmo era escrever sobre a vida
Muitas coisas podem explicar o mundo em que vivemos de maneira mais direta e clara do que as palavras óbvias. Crônicas do passado são documentos históricos que nos contam sobre o cotidiano e os costumes. O que dizer da comida então? Hábitos alimentares, sejam nutricionais ou hedonistas, podem decifrar a sociedade. E a maneira como as pessoas enxergam a comida ao longo dos anos, como mudam seu relacionamento com ela, vale mais do que mil aulas de história.
Mary Frances Kennedy Fisher (1908-1992), uma das maiores autoras sobre comida que já pisou sobre a Terra, aparentemente tinha como tema primordial a comida, mas o que ela fazia mesmo era escrever sobre a vida. Apesar de dar a ideia de que estava fechada em algo “menor”, recebeu o reconhecimento de gente como o poeta W.H. Auden, que a considerava a maior escritora americana. Talvez você não tenha ligado o nome à pessoa, afinal, ela assinava M.F.K. Fisher, porque achava que um autor homem teria mais chance de sucesso do que uma mulher (era 1937 quando publicou algo pela primeira vez). Mas pode ser que você apenas não a conheça, afinal suas últimas edições por aqui já têm mais de uma década.
Para a sorte de todos nós, enfim, a Companhia de Mesa resolveu retomar sua obra e acaba de relançar um de seus grandes clássicos, “Como Cozinhar um Lobo”, publicado pela primeira vez em 1942 nos EUA. Neste livro, Fisher usa o pretexto da comida para escrever sobre o lobo que batia à porta, ou a fome que rondava tanta gente nos anos de maior escassez durante a Segunda Guerra Mundial. É impossível ler a introdução à edição revista por ela mesma em 1951 (tempos de Guerra Fria) e não traçar paralelos com a fome que o Brasil passou a enfrentar em escalada nos últimos anos. Ela escreve sobre mulheres e homens terem perdido para sempre um pouco da “extravagância fleumática dos anos 1920”:
“Eles terão, até seu último dia sobre a terra, uma espécie de prudência culinária: manteiga, por mais limitada que seja, é uma substância preciosa que não deve ser desperdiçada; as carnes também, e os ovos, e todos os temperos do mundo que vêm de longe assumem um novo significado, tendo sido tão raros certa vez. E isso é bom, pois não há negligência mais vergonhosa do que aquela para com o alimento que comemos para viver. Quando existimos sem consideração ou agradecimento, não somos homens, mas bestas”.
Os descendentes da guerra e da seca sertaneja têm uma coisa em comum: uma ética rígida do não desperdício; jogar comida fora dói
Quem cresceu com os relatos dos antepassados sobre a seca setaneja brasileira certamente se identifica com os descendentes de sobreviventes de guerra: há uma ética muito rígida do não desperdício; jogar comida fora dói. Prestar atenção à comida é o mínimo que se pode fazer
Fisher escreve sobre tudo isso, sobre a dor, a dificuldade e o sofrimento, mas consegue fazer também o que considero um milagre: usa humor sem jamais ser leviana. Um bom exemplo é quando fala sobre ovos, um alimento difícil em tempos de guerra: “A melhor coisa a se fazer com ovos velhos é não comprá-los, pois não servem para nada (…) As galinhas, desde que consigam se alimentar o bastante, vão em frente na profissão escolhida, estando ou não o país em guerra, mas, infelizmente, o produto de seu labor é tão delicado e perecível que quando a maioria dos caminhões velozes estão sendo usados para transportar soldados, o preço dos ovos sobe demais, seja a oferta de boa qualidade ou não”.
Neste livro, ela esclarece que estes ovos velhos servem apenas para bolos. Ensina também uma receita de bolo de sopa de tomate, que garante que vai deixar o convidado sem saber do que se trata até o último farelo, além de exigir poucos ingredientes e ter uma cor bastante atraente.
Mas está muito preocupada em deixar a chama acesa — literalmente. Combustível, afinal, é difícil de se conseguir. Assim como o preço do gás, que galopou no Brasil, naquele tempo era importante encontrar receitas de rápido cozimento. Ou, ainda, que se utilizasse o forno para assar mais de uma coisa ao mesmo tempo e otimizar o funcionamento da cozinha e o uso dos combustíveis.
De todas as comidas, ela consegue tirar graça e elevar sua importância a um nível possivelmente inédito. Escreve um dos melhores textos sobre sopa que já li na vida — e olha que Nina Horta, outra titã da literatura de gastronomia, usou o preparo em até título de livro. Há uma verdadeira ode ao gaspacho, o texto mais emocionante que eu jamais imaginei ler. Ela o descreve como “uma sopa de verão perfeita, tantalizante, fresca e levemente perversa como são todos os pratos primitivos comidos por gente mundana demais”. Ainda é setembro, estamos no inverno, mas pelo amor de Deus eu vou bater uns tomates com pepino, azeite, cebola e o que mais ela me mandar no liquidificador agora mesmo.
Em algumas passagens do livro, fica a impressão de que ela delira um pouco. Se é tempo de escassez, como criar refeições que levam caviar, vinhos, creme de leite, filé. Mas a guerra é também isso, olhar para frente, esperar o que vem depois dela, esperar o melhor. É como a Fraulein Maria cantando sobre as coisas favoritas das crianças Von Trapp, órfãs de mãe, em “A Noviça Rebelde”. E atire a primeira pedra quem nunca o fez. Nos primeiros meses de alto isolamento da pandemia, trancada em casa sem pisar no hall, comprei uma bolsa pequena. Eu não tinha ideia de quando poderia usá-la, era uma bolsa de passeio, mas era também uma maneira de dizer: “Ei, mundo, não desisti de você. Me espera que já já eu volto”.
Até o fim deste maravilhoso livro, Fisher nos ensina sobre como comer bem e economizar; como não cair em modismos e dietas e evitar os ultraprocessados (alô Rita Lobo!); e, acima de tudo, como ser feliz com a comida. “Uma vez que precisamos comer para viver, é melhor fazê-lo com graça e gosto”, escreve. Repito então um de seus pensamentos mais fortes e interessantes e deixo como sugestão de reflexão para você que chegou até aqui: “Não consigo contar o número de pessoas boas que conheço que, a meu ver, estariam ainda melhor se curvassem seus espíritos para estudar suas próprias fomes”.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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