Vanessa Rozan
O que a inteligência artificial fala sobre a mulher ideal
Vivemos numa montanha russa de padrão de beleza que ora escancara um corpo extremamente magro, ora adiciona à magreza músculos esculpidos a muito custo
Para quem não acompanhou as últimas décadas da moda e da beleza, eu vou oferecer um curso rápido aqui, uma aula de história em 140 caracteres nível Twitter vintage em que a gente vai fazer uma análise bem calma sobre o que a inteligência artificial desenhou sobre o assunto.
Desde a década de 60, a juventude entrou na moda para nunca mais sair, também ficou em alta a magreza dos corpos femininos, que eram mais como os de crianças púberes esticadas antes do tempo do que a em ampulheta das décadas anteriores. Pense na Twiggy para sintetizar a imagem que eu tento aqui descrever. De lá para cá, pouco mudou nesse sentido. A gente vem numa montanha russa de padrão de beleza que ora escancara um corpo extremamente magro, como a onda heroin chic; ora adiciona à magreza esperada os músculos que dão a leitura visual de um corpo esculpido a exercícios e dieta, só que sem perder a “feminilidade”. Podemos fazer essa análise da mudança da era VHS de exercício da Jane Fonda dos anos 80 para a magreza dos anos 90 e do início dos anos 2000, com as barrigas à mostra e cinturas baixíssimas. E depois com o retorno das blogueiras fitness e do corpo curvilíneo em ampulheta dos anos 2010 até hoje, quando a silhueta supermagra voltou a ser a tendência, como apareceu na última semana de moda de Nova York.
(Aliás, um rápido parênteses aqui, os corpos plus size e mid size desapareceram dos últimos desfiles internacionais, mas isso é assunto para um texto só sobre o tema.)
Me perdi na contagem dos 140 caracteres da retrospectiva, mas acho que temos um ponto. Agora vamos somar redes sociais e algoritmos a esse balaio:
A moça ideal construída pela IA é uma mistura de 50% de Barbie, 35% de super-heroína, 10% de princesa da Disney e 5% de atriz pornô sueca
O Bulimia Project, site que divulga estudos confiáveis sobre bulimia, distúrbios alimentares, suas causas e tratamentos, pediu que três plataformas de Inteligência Artificial criassem a imagem da mulher ideal (e do homem também). O projeto especificou o banco de dados de pesquisa que essa inteligência deveria buscar para montar a tal imagem. A IA usou bilhões de imagens de humanos nas redes sociais com o recorte das que mais tinham engajamento em dados de mídia social. Mais engajamento, ou seja, mais likes, mais reações, mais visualizações, mais atenção do público. Adivinha como eram as imagens? Se isso fosse um podcast eu falaria: agora, feche os olhos e mentalize uma garota jovem, branca e bem magra. Ela olha para você com um olhar sedutor e certa ingenuidade. Seus lábios são carnudos e estão entreabertos. Os cabelos são longos, cheios, esvoaçantes e lisos. Sua pele também é lisa, sem poros, manchas ou linhas. Os olhos são claros e grandes e o nariz pequeno, como as princesas dos contos de fada. A maçã do rosto é alta e corada. A moça ideal construída pela IA tem seios bem fartos que podem ser avistados num decote. Ela é uma mistura de 50% da boneca Barbie, 35% de super-heroína, 10% de princesa da Disney e 5% de uma atriz pornô sueca. Essa é a mulher ideal segundo o que os algoritmos encontraram dentro das redes sociais, de acordo com que mais despertou interesse visual.
Primeiro, é um ideal que não é novo. Sabemos que desde sempre, esse padrão é excludente, racista, gordofóbico e etarista. O que a tecnologia fez foi desenhá-lo de forma bem didática. Nem hoje nem no passado, a indústria da moda foi inclusiva com mulheres e homens. Só que para as mulheres essa questão tem uma atenção primária, a beleza e o corpo sempre foram os maiores capitais sociais, que poderiam garantir ascensão social, bom casamento, status, fama e, por consequência, dinheiro. A Jia Tolentino escreveu em “Falso Espelho” (Ed. Todavia, 2020) que as únicas profissões que mulheres ganham mais do que homens são aquelas atreladas à sua imagem e ao seu corpo: modelo, atriz pornô e influenciadora.
Quem programa os algoritmos para que estejamos sempre angustiados?
Aí você pode fazer a analisada e dizer que não liga para engajamento, que vive o seu próprio padrão. Certo, muita gente não liga de fato, e que ótimo que esse não é o motivo de felicidade dessas pessoas que já alçaram o nirvana na sociedade da visibilidade. Mas tem uma parcela bem grande de humanos que é impactada pelas redes sociais e pela impossibilidade de chegar perto desse padrão, como ele afeta sua autoestima e seu sentido de pertencimento. E, mais do que isso, acredita que esses corpos que estão exaltados na rede social são possíveis, que são o corpo certo ou a beleza certa. O que não fica claro para o consumidor dessa imagem é que muitos desses perfis podem ter usado filtros, retocado suas fotos em photoshop e/ou têm acesso a médicos da área da estética, além de tempo e dinheiro para manter alimentação, exercícios, mas tudo isso é silenciado em nome de uma imagem final que parece ser real.
Numa lógica neoliberalista, onde você é responsável pelo seu sucesso e é só se esforçar mais para chegar lá, essa angústia de viver com o corpo real pode ser ainda mais acentuada, porque o que esse sistema prega é que se esse seu corpo engorda ou envelhece, se ele tem poros, pelos, linhas, a culpa é sua. Como Max Fisher escreveu em “A Máquina do Caos” (Todavia, 2023), “temos uma vaga sensação que o uso das redes sociais nos é prejudicial”. E eu me pego aqui perguntando, será que os algoritmos reforçam o padrão tornando-o mais visível ou a aderência ao padrão programa os algoritmos a mostrar essas imagens com mais frequência? Ou, numa teoria ainda mais maluca, quem programa os algoritmos para que estejamos sempre angustiados?
Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.
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