Vanessa Rozan: Essa tecnologia audaciosa — Gama Revista
COLUNA

Vanessa Rozan

Essa tecnologia audaciosa

É preciso um filtro crítico com pouco glamour e nada audacioso que nos faça ver os efeitos das redes sociais em nossa autoestima

10 de Março de 2023

Tem filtro novo no TikTok e o nome dele é Bold Glamour, algo como glamour audacioso. Eu escrevi “novo” mas acho que a essa altura, entre digitar essa coluna e publicar, pode ser que ele já esteja velho dado o ritmo que as coisas operam nessa rede social. O tal Bold Glamour, se você não testou ainda, vale o experimento e aqui me explico: ele aplica sobre o seu rosto uma face “harmonizada”.

Você que me lê deve estar pensando que é só mais um filtro que modifica seus volumes faciais ou te aplica maquiagem ou melhora a luz do vídeo e até tira os poros. Pois ele faz tudo isso e mais, ele parece real demais. É possível ver ainda traços de realidade, talvez um sinal de leves poros, uma textura pouco editada de pele, maquiagem suave, bem trabalhada nos claros e escuros, que evidenciam partes do rosto como centro e parte alta das maçãs. Ele basicamente faz uma harmonização facial em você sem te perguntar se algo estava precisando ser harmonizado antes do processo começar.

Diferente de filtros usuais ou antigos, o Bold Glamour acompanha perfeitamente seus movimentos, mesmo quando você passa a mão sobre o rosto. Ele não dá margem para dúvidas. Quando você retira o filtro e se olha refletida na tela, tem certeza que voltou pior do que quando resolveu selecionar o Glamour Audacioso. É sério, você quase pede desculpas por se apresentar assim depois que o filtro deixa seu rosto sem os efeitos dessa inteligência artificial. E sim, dá o maior gatilho. Você começa a pensar se deveria ter mais boca: ficaria melhor? Talvez a questão seja a sobrancelha, melhor seria se ela fosse mais alta, mais arqueada, mais definida? Tem algo errado com meu rosto e me parece que a passagem natural dos anos acabou mesmo comigo, qual o telefone daquela dermato mesmo?

Quando você retira o filtro e se olha refletida na tela, tem certeza que voltou pior do que quando resolveu selecionar o Glamour Audacioso. E, sim, dá o maior gatilho

O que a gente não está olhando com essa audácia toda é o aumento de 390% no número de procedimentos estéticos e o aumento de cirurgias plásticas em 141% entre adolescentes nos últimos dez anos. Isso tudo sem contar os casos de Dismorfia Corporal ou Síndrome do Snapchat, que já conta com vários questionários onlines do tipo quiz para saber se você tem ou não, parece teste da Capricho. Imagina se a gente cruzasse o diagnóstico de dismorfia corporal entre pacientes de intervenções estéticas, será que seria alto o número? Sim, existem alguns estudos sobre o assunto.

Mais do que cruzar esses dados, que seria de extrema importância para a nossa sociedade e para que médicos cirurgiões possam amparar melhor e encaminhar pacientes com Dismorfia Corporal, eu me pergunto se de fato é possível não ter alguma dismorfia estando exposto às mídias tradicionais e às redes sociais. Eu cresci vendo só mulheres brancas, magras e jovens em lugar de destaque: na TV, na publicidade, no jornal, no Carnaval, nas revistas de moda e nas revistas femininas de comportamento que até ontem tinham chamadas como “corpo de verão” ou “barriga chapada”. Eu estou exposta à essa radiação faz tempo e eu sei bem os danos que ela me causa, eu tenho certeza que você em alguma proporção se identifica comigo.

No livro “A Geração Artificial”, de Nicholas Carr, o autor comenta que “como nossa janela para o mundo e para nós mesmos, um meio popular molda o que vemos e como vemos – e por fim, se usarmos o suficiente modifica quem somos, como indivíduos e como sociedade”. O pior é que fica pior, o autor de outra publicação sobre o assunto, Marshall McLuhan reforça: “os efeitos da tecnologia não ocorrem no nível das opiniões ou dos conceitos, eles alteram os padrões de percepção continuamente e sem qualquer resistência”.

As buscas por dicas de emagrecimento nas redes sociais são o reflexo da angústia de ver corpos construídos com muito dinheiro, suor e tempo que são exaltados todos os dias

Pode parecer que muita coisa mudou com os adventos do Body Positive e outros movimentos que buscam falar sobre corpos reais, mas as buscas por dicas de emagrecimento nas redes sociais e plataformas de pesquisa são o reflexo da angústia de ver corpos construídos com muito dinheiro, suor e tempo que são exaltados todos os dias e colocado em pedestais. Veja agora no Carnaval: algum corpo real chacoalhou em destaque na avenida, alguma “musa” com flacidez, celulite, estrias e gordura localizada? Transformar o corpo real em um avatar de si mesmo é o caminho que estamos percorrendo como sociedade. E os filtros e redes sociais só aceleraram o processo. É preciso um filtro crítico com pouco glamour e nada audacioso que nos faça ver os efeitos das redes sociais em nossa autoestima.

Vanessa Rozan é maquiadora, apresentadora de TV e curadora de beleza e bem-estar. É proprietária do Liceu de Maquiagem, uma escola e academia de maquiagem e beleza profissional, aberta há 13 anos. Fez mestrado em comunicação e semiótica pela Puc-SP, onde estudou o corpo da mulher no Instagram.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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