Maria Ribeiro
De repente 13
A música que ele ouve nos fones, os gostos, as séries de tevê, os jogadores preferidos, as conexões, o humor – agora, tudo é original e, não mais, extensão
Enquanto eu escrevo, ele dorme. Treze anos recém completados – ou seriam completos? – e um sono de quem finalmente tem seu próprio endereço. Sua escritura de si, sua faixa de presidente, seu documento com foto, carteirinha do próprio clube.
A música que ele ouve nos fones, os gostos, as séries de tevê, os jogadores preferidos, as conexões, o humor – agora tudo é original e, não mais, extensão. Agora é tudo inteiro, e, não mais, metade. Agora é silêncio e verbo, estilo e opinião, bandeira e argumentos pró-França – mesmo com uma casa inteira torcendo pra Argentina. Agora é aproveitar os pedaços, produzir memória, se acomodar na plateia, curtir o ingresso.
Quando será que aconteceu, a independência? Em que instante, meu caçula deixou de esperar a reação do entorno antes de pensar a respeito das coisas?
Quando será que aconteceu, a independência? Em que instante, qual dia do ano, em que passo em direção ao mate da geladeira meu caçula deixou de esperar a reação do entorno antes de pensar a respeito das coisas? Não tenho a menor ideia, mas recebi o certificado: não tenho mais filhos pequenos. E, depois do susto, veio a queda da ficha: e não é que é bom também?
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Escrevo esse texto em meio às notícias – mais do que esperadas – da herança genocida deixada por Bolsonaro sobre os Yanomami. Brasileiros antes de nós, e deixados – também por nós – pra um “depois” que não deu mais tempo pra quase cem crianças (só no ano passado). Com o choque das imagens, penso nessas adolescências. Que nunca virão. Que nunca serão difíceis ou “trabalhosas”. Que nunca se transformarão em queixas, simplesmente porque não existirão.
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Eu acho que devia ser proibido falar mal da puberdade. Das portas fechadas, das respostas curtas, da distância. Não que eu consiga. Nem sempre sou quem eu sei que deveria ser. Mas queria ser multada a cada tropeço, porque no fundo agradeço cada dia da vida dos meus – cada dia menos meus – meninos.
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Acabei de voltar do Festival de Verão de Salvador, onde, pela primeira vez, vi um show de música com meu filho mais novo. Onde tive a chance de ouvir, ao mesmo tempo que ele, a trilha sonora dos seus últimos meses. Conheci um monte de gente da qual nunca tinha ouvido falar. E também mostrei Gil e Caetano, Criolo, Ney Matogrosso, Margareth Menezes e Olodum, que ele conhecia do clipe do Michael Jackson.
Voltei com a camiseta da Gal, a mesma usada por Caetano no show com seu parceiro tropicalista. Voltei também com a camiseta dos 13 anos do cara com quem eu tenho a sorte de dividir a vida.
A vida, essa coisa imensa e importante, e que deve ser direito de todo e qualquer brasileiro.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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