Milton Nascimento, 80: uma entidade artística
Parte de uma das gerações mais revolucionárias das artes no país, se não a mais, sua música firma-se como um vasto patrimônio a ser revisitado, estudado e desfrutado
“A última sessão de música”, turnê de Milton Nascimento que se encerra em novembro, aponta uma estação final à trajetória de um dos maiores artistas populares de todo o mundo. Um fechamento de ciclo dos palcos, para ser mais exato. Sua obra seguirá em aberto, frente à inventividade do que apresentou em seu cancioneiro por mais de cinco décadas: um canto potente que fala ao coração, junto a uma sensibilidade e técnica que subverteram e fincaram novos pilares estéticos à MPB. Numa perspectiva estendida, que já se faz necessária, seu lugar no panteão da mineiridade, de Aleijadinho a Guimarães Rosa e Drummond, vai ficando cada vez mais óbvio e natural.
No entanto, a despeito da figura cativante e voz ainda capaz de arrebatar, a fragilidade humana do artista que completa 80 anos neste 26 de outubro igualmente permite observar a forma com que um país olha em retrospectiva, com filtros do presente, aqueles que forjaram nossa identidade cultural. Da retirada de Rita Lee dos holofotes ao falecimento de Aldir Blanc e Elza Soares, tratam-se de trajetórias que tiveram e têm seu reconhecimento fraturado por tentativas de esvaziar ou perseguir o caráter político e de crítica histórica inerentes às suas obras, num contexto de conservadorismo, ataques e tensão social. A música de Milton Nascimento, porém, sempre transversal e visceral, já encarava essas fissuras do Brasil desde a década de 1960.
A música de Milton Nascimento, sempre transversal e visceral, já encarava essas fissuras do Brasil desde a década de 1960
A obra de Bituca bebe em temporalidades diversas, do barroco e rock aos cais da imaginação. Mas o artista, enquanto sujeito social, é sempre filho de seu tempo. A família adotiva mineira trouxe afeto, contato com o piano na sala de estar e acesso a discos nos anos 1940 e 50. E da infância à adolescência, dois elementos também deram solo firme para o caminho tão fértil e exuberante que passou a trilhar: o contato com um rico cancioneiro popular nacional e internacional fortemente assimilado pelas ondas do rádio e a prática instrumental nos bailes da vida em Três Pontas, Alfenas e sul de Minas, ao lado de amigos e parceiros como Wagner Tiso.
Já em Belo Horizonte e depois no Rio de Janeiro, resplandecia a capacidade de um jovem de afinação e alcance vocal assombrosos, de toque único ao violão, com intuição e inspiração que se decantavam em composições sem precedentes, como “Novena” e “Tarde”. Décadas depois, enquanto o mundo aceitou Milton como um gênero à parte, muitos ainda buscam decifrar seus enigmas. Seria ele um artista naif, como já se disse? O termo, comum nas artes plásticas, geralmente se refere a um talento de beleza cativante, mas de simplicidade espontânea alheia a regras formais. Nada mais enganoso no caso do brasileiro.
Com “Travessia” ele apresentava aos festivais de TV total domínio harmônico e estético de uma música popular brasileira moderna e bem estruturada, porém com tessituras atípicas que atestavam sua genialidade em curso. Dominando as possibilidades formais, ele subvertia rítmicas e pressupostos harmônicos com sagacidade e intensidade. Não por acaso foi acolhido tão precocemente por ícones do jazz da virada dos 60 aos 70, como Wayne Shorter, Herbie Hancock e depois Sarah Vaughan. Milton era por si só toda uma vanguarda artística, destacando-se mesmo em meio a contemporâneos tão talentosos ao sul do Equador.
Bebendo em fontes como Bossa Nova, samba e ritmos tradicionais, a MPB, a partir de nomes como Chico, Gil e Milton, conseguiu a façanha de modernizar o cancioneiro nacional com músicas que falavam às pessoas, a despeito da sofisticação que traziam. No caso de Bituca, essas novidades se dão, dentre tantas outras, em polirritmias de seu violão e canto, na passagem de um mesmo acorde maior ao menor, com sétimas atípicas, nas inversões constantes de baixos, no “baixo pedal” e recorrentes acordes suspensos, que geram tensionamento. No entanto, mais do que estranhamento, esses recursos serviram de cama a melodias de grande frescor e comunicação junto a públicos dos quatro cantos do planeta – basta pensar em “Maria, Maria” e “Cravo e Canela”.
Como separar o aconchego que traz ao espírito músicas de amizade e amor, do desassossego e indignação
Sobretudo no Clube da Esquina, mas não somente, a figura solar de Milton atraiu uma constelação de instrumentistas, compositores e letristas de grande quilate ao seu redor. Sendo também um excepcional letrista (“Morro Velho”, “Coração de Estudante”), ele deu vida a músicas de poética pulsante, sempre revirando o solo social e político do país, conectando a América Latina numa Nueva Canción, expondo a herança escravocrata ainda presente no trabalho das classes baixas (“Canção do Sal”), a violência urbana e as desigualdades sociais (“Milagre dos Peixes”), sem deixar de enaltecer o feminino (“Pietá”) e suas ancestralidades africana (“Raça”) e irmandade com os povos indígenas (“Txai”), além de olhar a morte enquanto memória e aprendizado (“Sentinela”).
Milton modernizou o cancioneiro nacional com músicas que falavam às pessoas, a despeito da sofisticação que traziam
A introspecção e sorriso enigmático, sem a adesão partidária direta de Chico ou a atuação ativa na arena pública tal qual Caetano e Gil, alçaram Milton, entretanto, a um lugar quase mítico. Porém, sempre que questões decisivas do país se impuseram, ele não se esquivou de colocar sua voz a serviço do meio ambiente, da democracia e dos direitos sociais – algo que novamente ocorreu nos últimos embates a partir da eleição do atual presidente da República. Vale lembrar que seu nome foi excluído da lista de personalidades negras pelo então presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, em 2020.
Na intolerância e superficialidade das redes sociais, no entanto, muitos evocam alguma surpresa e hostilidade frente a artistas de sua geração que têm a ousadia de não só comover, mas de expor posicionamentos políticos. Como separar o aconchego que traz ao espírito músicas de amizade e amor, do desassossego que serviu de inspiração e indignação para a feitura de boa parte delas? Seria possível cantar “Coração Civil” e “Menino” e excluir os valores e indignações ali contidos? Em tempos extremos, tenta-se impor que artistas unicamente entretenham, sem entender que o próprio existir de suas obras parte da leitura crítica do mundo.
No momento em que Milton faz 80 anos, mostrando a longevidade de uma das gerações artísticas mais revolucionárias das artes no país — se não a mais —, sua música firma-se como um vasto patrimônio a ser revisitado, estudado e desfrutado. Ouvir suas dezenas de álbuns traz a compreensão dos movimentos que liderou, das pontes que ergueu com artistas de todo mundo, com o cinema e a dança. Mas também nos convida a mergulhar numa poética bela e visceral que percorre os brasis interioranos, as florestas, os dilemas sociais e as utopias de um país ainda possível. Ao passo que se faz despedida, a última nota da turnê em questão reafirma a entidade artística que só o Brasil foi capaz de produzir na figura única de Milton Nascimento.
João Marcos Veiga é jornalista, músico e doutorando em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)