Isabelle Moreira Lima
Uma cerveja pela paz
Na Colômbia, o acordo de paz levou ex-integrantes das Farc a deixarem a guerrilha e criarem uma cerveja maltada com sabor tostado e notas de cacau
Enquanto no Brasil temos, nas últimas semanas, as piores notícias de um país armado, no domingo (7) os colombianos ouviram, durante a posse do novo presidente, Gustavo Petro, um discurso que priorizou a paz. “Convocamos a todos os armados a depor suas armas nas nebulosas do passado. A aceitar benefícios jurídicos em troca da paz, em troca da não repetição definitiva da violência”, afirmou no discurso da posse, que ocorreu na praça de Bolívar, no centro de Bogotá. “Hoje começa a Colômbia do possível, nossa segunda oportunidade na Terra”, disse.
Não muito distante dali, no bairro de Chapinero, está a Casa de La Paz, sede da cervejaria La Trocha, que tem absolutamente tudo a ver com esse discurso: é a materialização dele. Ela foi fundada por ex-guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, após a assinatura do acordo de paz de 2016. O acordo, que não é considerado um sucesso exatamente, cria agências de reintegração para auxiliar os ex-combatentes, além de conceder benefícios financeiros para que se reestabelecessem na sociedade civil – o que causou sua rejeição por parte dessa mesma sociedade.
Em 2019, um grupo de dez ex-combatentes de diferentes partes do país e boa parte deles ex-presos políticos uniu seus benefícios para um projeto coletivo, sem saber muito por onde começar. Ao ter contato com pesquisadores do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Nacional da Colômbia, acabaram chegando à ideia de uma cerveja artesanal e assim nasceu La Trocha. Os acadêmicos acabaram por se tornar consultores voluntários da nova cervejaria e mentores de Doris Suárez e Alexander Monroy, os ex-combatentes que encabeçam o projeto.
Dez ex-combatentes das Farc criaram La Trocha, uma Ale Porter com nota de cacau que, além de saborosa, funciona como símbolo da paz
Juntos, professores e ex-Farc chegaram ao estilo Porter Ale, de alta fermentação, escuro e de sabor intenso e notas de pão, biscoito tostado, chocolate e caramelo, com cinco graus de álcool e quatro maltes. O nome foi um ponto de debate tenso: La Trocha, que em português significa algo como caminho sinuoso, era muito ligado aos lugares de atuação da guerrilha e poderia ser visto de forma pejorativa. “Mas sabíamos que precisávamos de algo que nos identificasse, que mostrasse nossas raízes, pois viajamos e percorremos muitos caminhos“, afirmou Suárez ao canal colombiano Institucional.
Hoje, além da Porter Ale, fazem uma American Wheat com maracujá bem frutada, refrescante e de corpo leve chamada Churuka, que faz referência à comunicação dos guerrilheiros; e uma vermelha Strong Bitter bem frutada com leve nível de amargor, batizada de Chamí, em homenagem a uma pequena ave vermelha que habita a cordilheira onde estão os povos indígenas Embera Chamí. Todas têm cerca de 5% de álcool.
A cervejaria ganhou também uma sede, La Casa de La Paz, onde vende as bebidas engarrafadas, na pressão e produtos de outros grupos de ex-combatentes: há cafés, chocolates, chás de coca, camisetas, pôsteres, entre outros. Mas mais que isso, foi concebido como um espaço de reunião e reconciliação.
Dois dias antes da posse, visitei o lugar, que tem ares de centro acadêmico e é também uma casa de shows e ponto de encontro de jovens da esquerda bogotana. A programação era uma apresentação de cumbia e, depois, palco aberto a quem quisesse. Pense em tambores e canto afro e muita, mas muita dança. Pense também em muito calor e regatas mesmo quando os termômetros marcavam 15 graus do lado de fora. Isso, provavelmente, é o que pode ser identificado como clima de paz.
Uma bebida que reúne e congrega amigos e até mesmo desconhecidos em um ambiente festivo e caloroso tem certo poder de bandeira branca
Uma bebida que reúne e congrega amigos e até mesmo desconhecidos em um ambiente festivo, caloroso (lírico e literalmente) tem também certo poder de bandeira branca. Na Colômbia ou aqui, quando nos reunimos e abrimos uma garrafa seja para celebrar ou apenas trocar uma ideia e construir juntos uma reflexão, isso, para mim, é um exercício de união, comunhão. Claro, o álcool pode gerar inúmeros problemas quando ingerido de maneira irresponsável ou por aqueles que têm problemas de saúde. Mas, ali, na Casa de La Paz, ao som da cumbia, com seus muitos maltes, La Trocha era a mais pura expressão pacifista que tantos de nós precisamos.
As cervejas são boas, especialmente as engarrafadas (as da pressão menos carbonatadas, como no estilo inglês), mas mais que isso o projeto é lindo. Aponta para o tal caminho possível tão falado durante a posse, a segunda oportunidade do discurso de Petro viva e visível a olho nu.
E já virou símbolo. Ainda que o acordo de 2016 seja considerado fracassado pelas questões ainda abertas, um saldo de violência e muitos problemas na reintegração dos ex-combatentes, foi celebrado nos seus cinco anos desde a assinatura com um brinde de La Trocha entre o ex-presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e o líder das Farc, Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como Timochenko, no ano passado.
“Quem prova La Trocha vai além do sabor, da história e da estigmatização de um país que, mesmo tendo a possibilidade de contribuir para a paz, se dividiu entre a guerra e o ódio”, diz Suárez. “É a cerveja desse novo tempo e o projeto de desmobilizados que acreditam e fazem parte da reunião e da reconciliação.”
Saca essa rolha
VINHOS PARA FICAR NA PAZ
Um branco brasileiro bem cremosão e abaunilhado, com corpo de inverno e estrutura para acompanhar comidas cremosas é o brasileiro Casa Fontanari Chardonnay Batonnage 2021. Um tinto levinho e delicioso, bem fresco e elegante, com notas de fruta vermelha e flor é o argentino Miras Jovem Pinot Noir, da Patagônia, que é super versátil e pode acompanhar de uma carne magra a um peixe gordo (atum) ou pode brilha sozinho também. E um espumante branco de uva tinta, Blanc de Noir Chandon Extra Brut, de Pinot Noir, para tomar e ficar de boas com os amigos.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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