Coluna do Marcello Dantas: Códice Cruz Badiano, um outro mapa das Américas — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Um outro mapa para as Américas

Precisamos criar mecanismos de escuta e interpretação de conhecimentos ancestrais antes que não haja mais caminho possível

09 de Agosto de 2022

Muitos mitos e lendas são criados a partir de percepções erradas dos fatos. Muitos dizem que os conhecimentos das culturas pré colombianas das Américas não haviam sido compilados ou se mantinham em segredo em suas comunidades que restaram. Em parte isso é verdade, porém quanto mais nos aproximamos da pesquisa esse mito vai se diluindo.

Estou abrindo nesta semana uma exposição no Sferik do México sobre as plantas de poder da cultura maia. Feita com a artista colombiana Cristina Ochoa – Pharmakon, Simbiótica Psicotropical é uma interpretação sobre o conhecimento que se tem acesso aos poderes de cura, psicodélicos e terapêuticos de plantas nunca verdadeiramente estudadas pela ciência ou, simplesmente, negligenciadas como ervas daninhas.

Cada uma dessas plantas individualmente têm o poder de aliviar ou curar boa parte dos males da vida contemporânea. Desde inflamações, à problemas de juntas, intestino e, acima de tudo, de reconscientização e da manifestação de um certo mapa da mente.

O mundo urge por uma nova farmacopeia, baseada em enteógenos e não simplesmente em mais substâncias sintéticas que afligem gerações de pessoas com seus efeitos colaterais, por vezes, devastadores. Como quase todo conhecimento, a medicina natural indígena tem na sua origem a observação e a experiência, a tentativa e o erro.

A tradição oral é seu principal veículo de transmissão sendo que, passados de boca em boca e, de geração em geração, um bom número de remédios herbais ultrapassaram a barreira do tempo para serem utilizados até os nossos dias.

Valorizar o saber das plantas e seu potencial de cura é essencial neste momento de esgotamento global

O interessante é pensar que os médicos Martin de la Cruz e Juan Badiano, jesuítas do Colégio de Santa Cruz, em 1552, criaram um códice sobre esse conhecimento acumulado pelas culturas maias durante mais de 7 mil anos. Esse códice foi mantido inacessível na biblioteca do Vaticano até ser finalmente publicado somente em 2020. Por outro lado, o trabalho silencioso e incessante de camponeses das culturas nahua e maia mantiveram essas espécies vivas seja na natureza ou em jardins etnobotanicos.

O Códice Cruz Badiano é o livro medicinal mais antigo feito nas Américas. É fonte de primeira mão daquilo que poderia ser o fundamento da medicina pré-colombiana. Sua publicação neste momento histórico vem ao encontro a urgência desses saberes para nossa vida cotidiana.

Enfermidades que vão de problemas para dormir, para relaxar, a problemas sexuais, a ansiedade, a pressão alta, a cicatrização e aos estados inflamatórios são acessados com grande eficácia por essas plantas que atendem por nomes como Sac Nicté, Henequen, Copal, Xtabay, peyote e Ixquic. Uma expressão incrível de biodiversidade e de biopossibilidades.

É impressionante que foi preciso 470 anos para tornar pública a principal obra que consegue reunir a medicina pré-colombiana com algum método sistemático ocidental. Valorizar o saber dessas plantas e o seu potencial de cura é algo essencial nesse momento de esgotamento global.

O processo de decolonização exige procedimentos de abertura dos conhecimentos cifrados e territórios de prática neutra onde o encontro de culturas possa florescer. Esses conhecimentos não pertencem a nacionalidades mas, sim, aos reinos naturais. São senhas deixadas na natureza para que pudéssemos enfrentar os desafios que um dia viriam.

No Brasil, pelo menos uma empresa de biotecnologia entendeu o recado e está se focando na interação biológica entre espécies na busca por criar um novo códex para as plantas tropicais ampliados pela ciência genômica e inteligência artificial. Nintx foi fundada em 2021 e tem projetos ambiciosos de se criar novas terapias com base na natureza negligenciada e suas interações.

Precisamos criar mecanismos de escuta e interpretação de conhecimentos ancestrais. Precisamos ser capazes de experimentar esses caminhos antes que não haja mais caminho possível.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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