Malcolm Ferdinand: ‘A preservação da floresta deve começar pela das comunidades que ali vivem’
Autor de “Uma Ecologia Decolonial”, o engenheiro ambiental martinicano afirma que a defesa do ambiente e a luta contra o racismo são duas faces de uma mesma moeda
“Uma cólera rubra recobre o céu, as ondas se agitam, a água sobe, os pássaros se assustam.” Com essa frase bastante apocalíptica — mas infelizmente também muito próxima da realidade atual — o engenheiro ambiental e cientista político Malcolm Ferdinand abre seu livro “Uma Ecologia Decolonial” (Ubu, 2022). Nascido ele mesmo na Martinica, ilha que integra a região das Pequenas Antilhas, no Caribe, o que o autor propõe nas mais de 160 páginas da obra é uma ecologia pensada do ponto de vista do mundo caribenho, que até hoje enfrenta feridas deixadas pela herança colonial na região.
MAIS SOBRE O ASSUNTO
A pandemia na floresta
‘Tudo está conectado’: como as florestas ajudam a lavoura a produzir
Previsões para um futuro incerto
O Caribe, aliás, é um ponto de partida perfeito para falar do tema, pois, como o próprio Ferdinand aponta, o nome da região descende do personagem Caliban, da peça shakespeariana “A Tempestade”. Para quem não está com seu Shakespeare em dia, na peça original, se tratava de um escravo fisicamente disforme. Inicialmente, era como os europeus designavam os habitantes do arquilépago, considerados selvagens e canibais. A região, portanto, foi nomeada como uma representação da visão do colonizador em relação aos povos e territórios que ocupava. “Caribe significaria uma entidade desprovida de razão cuja fiscalização por parte das colonizações europeias e de suas ciências faria emergir lucros econômicos e saberes objetivos”, escreve o engenheiro ambiental.
Essa perspectiva colonial persiste nos dias de hoje, segundo Ferdinand, numa sociedade que ainda insiste em representar o Caribe apenas como um oásis turístico, “um intervalo de areia inabitado fora do mundo”. Portanto, pensar a ecologia a partir da visão dos caribenhos é refletir sobre o meio ambiente a partir de uma quebra do ponto de vista hegemônico, “sustentada pela convicção de que os caribenhos, homens e mulheres, falam, agem, pensam o mundo e habitam a Terra”.
Foi mesmo a partir das práticas de povos indígenas e quilombolas do Caribe e das Américas que Ferdinand aprendeu desde muito cedo que “não é válido separar questões ambientais das exigências de justiça, igualdade e dignidade”, como afirmou em entrevista a Gama.
Essa conclusão também levou o autor a questionar a ideia, hoje difundida de forma quase unânime, de que o homem — nessa sua representação coletiva e quase ficcional de tão imprecisa — é o único culpado pelos desastres ecológicos que nos cercam. Isso porque a noção mais uma vez nega um lugar aos povos negros, excluindo da equação uma experiência colonial dentro da qual a destruição do mundo e das pessoas racializadas estão diretamente conectadas.
Em conversa com Gama, Ferdinand fala sobre a falta histórica de diversidade dentro de organizações de proteção ambiental, sobre a mineração e o desmatamento desenfreados nas Américas como continuidade do projeto colonialista e do motivo por que a preservação das florestas deve começar pela de seus habitantes nativos.
Antes de tudo, Ferdinand deixa uma coisa clara. Falar sobre ecologia decolonial não é simplesmente pensar a ecologia de um ponto de vista decolonial. “Essa formulação faz parecer que a ecologia é algo que independe completamente da constituição colonial sobre a qual se ergue o mundo moderno. E que somente algumas pessoas se interessam em enxergá-la dessa maneira”, explica. Pelo contrário, o que o engenheiro ambiental e cientista político defende em seu livro é que essas duas coisas são inseparáveis, e precisam urgentemente ser pensadas como tal.
“Uma maneira simples [para entender a tese] é olhar de perto as questões sobre as quais estamos falando, as pessoas e os corpos que fazem parte desses movimentos. Afinal, quem pode falar sobre a Terra? Uma outra forma é perguntar quem se beneficia de determinadas políticas ambientais ou quem mais sofre com os danos ao meio ambiente causados ??pelo capitalismo racista. Certificar-se de que essas perguntas sejam feitas é um passo importante.”
O pesquisador define como “habitação colonial” algumas práticas correntes do colonialismo, a exemplo da tomada de territórios e a exploração de riquezas alheias — muitas delas em voga ainda hoje. “A grilagem de terras e a exploração do ecossistema, incluindo os humanos e os animais, fazem parte de um mesmo processo de transformação completa da Terra para atender aos interesses do projeto colonial do Ocidente. As Américas e o Caribe são um testemunho impressionante dessa transformação desde o final do século 15 até hoje”, afirma.
No livro “Uma Ecologia Decolonial”, o autor argumenta que, separadas, as duas lutas inclusive se enfraquecem. Segundo ele, basta analisar como o discurso e a prática ambientalista vêm imbuídos de um viés racista há séculos, tanto nos temas que abordam quanto na composição de suas principais instituições. “Não por acaso a maioria das organizações ambientais internacionais em meados do século 20 era predominantemente branca. Querendo ou não, isso criou uma divisão — a dupla fratura da modernidade — em que as pessoas de cor não se sentiam bem-vindas. Mais do que isso, sentiam que esses círculos não tinham seus interesses em mente”, diz Ferdinand. Mas o mais preocupante, ele reitera, é que a ausência de maior diversidade não costuma ser vista como um obstáculo para que organizações ambientalistas continuem funcionando exatamente da mesma forma que operam há décadas.
O que levou o engenheiro ambiental a se aprofundar em questões como essas foi a educação que teve na Martinica onde nasceu, uma ilha caribenha colonizada pela França e fortemente estruturada em torno de um racismo escravista e de um forte pensamento patriarcal. “As práticas dos povos indígenas e quilombolas nas Américas e no Caribe nos ensinam que não é válido separar questões ambientais das exigências de justiça, igualdade e dignidade, especialmente à luz do legado colonial do Ocidente.”
O prefácio do livro de Ferdinand é assinado por ninguém menos que a filósofa norte-americana Angela Davis, um dos nomes mais conhecidos dentro do ativismo pelos direitos das mulheres e contra a discriminação racial nos Estados Unidos. Em seu texto, ela explora a fundo o conceito de justiça ambiental, que mede e luta contra o desequilíbrio que existe na degradação dos espaços ocupados por populações de diferentes raças, gêneros e classes sociais. Ou seja, o preconceito que existe na sociedade se estende também à forma como o meio ambiente é explorado e sistematicamente destruído. A ideia de justiça ambiental foi particularmente forte na sociedade americana entre as décadas de 1970 e 1980, diz Ferdinand, e tem relação direta com o tese da ecologia decolonial. “A justiça ambiental veio como uma resposta para que as pessoas se engajassem mais amplamente com a ecologia e contra as práticas colonialistas e racistas.”
Questões como racismo, desigualdade de gênero, justiça social e colonialismo, no entanto, ainda estão longe de serem reconhecidas como parte da discussão ecológica, frisa Ferdinand. Ao contrário, são vistas como problemas secundários ou até terciários nesse setor. “É só uma maneira menos grosseira de dizer que esses temas realmente não importam.” Portanto, ele diz que é ingênuo imaginar que movimentos e organizações que mantiveram discursos e práticas preconceituosos ao longo de séculos vão mudar repentinamente de rumo. “A tarefa mais urgente agora é reconhecer que as ONGs ambientais não têm o monopólio do discurso ecológico. Que existem muitas outras organizações urbanas e indígenas que também se engajam na questão do habitar a Terra e o mundo.”
Na América Latina, onde a colonização deixou feridas profundas e visíveis até hoje, alguns dos exemplos mais violentos que Ferdinand aponta de sua continuidade são a mineração, o desmatamento interminável da Amazônia e a opressão permanente das comunidades indígenas. “Olhando para todos esses exemplos, dá para questionar se as feridas começaram mesmo a cicatrizar ou se continuam sendo infligidas ainda hoje. Nesses lugares, a dominação social dos trabalhadores e as consequências para as comunidades vizinhas são apenas o outro lado da moeda da destruição ambiental.” No caso específico da Amazônia, ele lembra que a floresta também não é virgem de pessoas, e esse fator precisa urgentemente ser levado em conta dentro de qualquer política ou projeto para a região. “Por isso, a preservação da floresta deve começar sempre pela preservação das comunidades que ali vivem.”
Embora a grande maioria dos líderes de movimentos ambientalistas pelo mundo continuem sendo brancos, o pesquisador também evoca atualmente lideranças mais diversas que, apesar de menos conhecidas, vêm desenvolvendo um trabalho essencial. “Precisamos lembrar de Berta Cáceres e Wangari Maathai. Penso também em Francia Marquez, Nimmo Basey e Vanessa Nakata, no cacique Raoni ou Davi Kopenawa”, destaca. O surgimento de nomes como esses e muitos outros em várias regiões do globo, diz o engenheiro ambiental, mostra que a preocupação hoje não precisa ser necessariamente mudar as instituições que já existem, mas fazer com que outras organizações e linguagens, outros rostos e corpos, outros discursos também tenham lugar e voz. “Isso é o que significa ser respeitado.”
“Não devemos nos contentar somente com respostas superficiais. Enquanto mitigamos os efeitos das mudanças climáticas ou preparamos as áreas costeiras para a elevação das águas, não podemos em nenhum momento deixar de abordar a raiz do problema. Ou seja, a injustiça multidimensional, a respeito da qual o racismo e o colonialismo ainda continuam operando sem nenhum tipo de perturbação.”
Este conteúdo é parte da cobertura especial sobre a COP27, que pretende estimular uma reflexão coletiva sobre o clima, realizada em parceria com o Instituto de Referência Negra Peregum e com apoio do Instituto Clima e Sociedade.