Sul & Oeste
No seu estilo melancólico, Joan Didion traça um retrato brutal dos Estados Unidos durante uma viagem pelas cidades do sudoeste americano
Considerada uma das jornalistas e ensaístas mais geniais da literatura contemporânea, a Joan Didion (1934-2021) de “O Ano do Pensamento Mágico” e “O Álbum Branco” ressurge com potência máxima nos textos de “Sul & Oeste” (HarperCollins, 2022). Inicialmente pensando em escrever uma reportagem a partir de suas anotações, a autora americana traça com riqueza de detalhes e um olhar bastante particular duas longas viagens que fez de carro com o marido durante a década de 1970: como adianta o título, em direção às regiões sul e oeste de um país em frangalhos.
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Misturando suas memórias com observações aguçadas e diálogos aparentemente corriqueiros, mas bastante reveladores, Didion cria um retrato geopolítico, cultural e comportamental dos Estados Unidos que ressoa de forma brutal até hoje. Ainda mais porque os relatos que abarcam uma série de cidadezinhas pelas quais o casal passou revelam preocupações profundas com questões de raça e classe, que permanecem praticamente idênticas até hoje. Sua passagem pela Califórnia, por outro lado, abre uma janela para a própria origem e criação privilegiadas da autora, além de seu rico processo de escrita.
“A ideia era partir de Nova Orleans e dali em diante não tínhamos nada planejado. Íamos aonde o dia nos levasse”, descreve Didion num pequeno parágrafo que serve como introdução à obra. Com prefácios da escritora brasileira Noemi Jaffe e do romancista e também ensaísta americano Nathaniel Rich, o livro evidencia, além de um recorte importante da história americana, aquele que Jaffe caracteriza como “o motivo constante para se ler Joan Didion”: “Seu estilo que parece pairar acima do bem e do mal, ignorando tempos e espaços, para mostrar como a melancolia, quando envolvida pela ironia e pela elegância, resulta num estilo que poucos conseguiram superar”.
Notas sobre o Sul
John e eu estávamos vivendo na Franklin Avenue, em Los Angeles. Havia algum tempo que eu queria revisitar o Sul, de forma que, em 1970, pegamos um avião para passar um mês lá. A ideia era partir de Nova Orleans e dali em diante não tínhamos nada planejado. Íamos aonde o dia nos levasse. Acho que me lembro de que John dirigia. Eu não ia ao Sul desde 1942-1943, quando meu pai estava em Durham, na Carolina do Norte, mas não parecia ter mudado muito. Na época, eu achava que dali poderia sair uma reportagem.
Nova Orleans
Em junho o ar de Nova Orleans fica carregado de sexo e morte, não uma morte violenta, mas uma morte por decomposição, por excesso de amadurecimento, putrefação, morte por afogamento, por asfixia, por febres de etiologia desconhecida. O lugar é fisicamente escuro, escuro como o negativo de uma fotografia, escuro como uma radiografia: a atmosfera absorve sua própria luz, nunca a reflete, mas a absorve até que qualquer objeto brilhe com uma luminescência mórbida. As criptas acima do solo dominam determinadas paisagens. Na liquidez hipnótica da atmosfera, todos os movimentos desaceleram até se converterem em uma coreografia, todas as pessoas na rua se movem como se estivessem suspensas em uma emulsão precária, e parece que entre os vivos e os mortos há apenas uma distinção técnica.
Certa tarde, na St. Charles Avenue, vi uma mulher morrer, tombada sobre o volante do carro.
— Está morta — declarou uma velha senhora que estava parada a meu lado na calçada, a alguns centímetros de onde o carro havia virado bruscamente e colidido contra uma árvore.
Depois que a ambulância chegou, eu segui a senhora pela luz aquosa do estacionamento do Hotel Pontchartrain e entrei atrás dela no café. A morte tinha parecido séria mas ao mesmo tempo casual, como se tivesse acontecido em uma cidade pré-colombiana onde a morte era algo esperado e que, no longo prazo, não tinha muita importância.
— De quem é a culpa? — dizia a senhora à garçonete do café, sua voz diminuindo gradualmente.
— Não é culpa de ninguém, srta. Clarice.
— Não dá para evitar.
— Não dá para evitar mesmo. — Eu achei que elas estivessem falando sobre a morte, mas estavam falando do clima. — Richard trabalhava no serviço de meteorologia e me disse que não podem fazer nada com o que aparece no radar. — A garçonete fez uma pausa, como se quisesse dar ênfase. — Eles simplesmente não podem ser responsabilizados.
— Não, não podem — disse a senhora.
— É o que aparece no radar.
As palavras ficaram suspensas no ar. Eu engoli um pedaço de gelo.
— E é isso — disse a senhora depois de algum tempo.
— Não dá para evitar mesmo. — Eu achei que elas estivessem falando sobre a morte, mas estavam falando do clima.
Era um fatalismo que eu acabaria reconhecendo como algo endêmico do tom característico da vida em Nova Orleans. Bananas apodreciam e abrigavam tarântulas. O mau tempo aparecia no radar, e era muito ruim. Crianças tinham febre e morriam, discussões domésticas terminavam em esfaqueamentos, a construção de estradas levava à corrupção e a rachaduras no pavimento por onde as trepadeiras tornavam a assomar. Assuntos de Estado caminhavam para ciúmes sexuais, como se Nova Orleans fosse Porto Príncipe, e todos os homens do rei se voltavam contra o rei. A temporalidade do lugar é operística, infantil, o fatalismo de uma cultura dominada pela selva. “Tudo que sabemos”, disse a mãe de Carl Austin Weiss sobre o filho, que havia acabado de matar a tiros Huey Long em um corredor do edifício do Capitólio do estado da Louisiana, em Baton Rouge, “é que ele levava a vida a sério.”
Por coincidência, aprendi a cozinhar com uma pessoa da Louisiana, onde a ávida preocupação dos homens com receitas e comida não era algo que me causasse estranheza. Vivemos juntos por alguns anos, e acho que o momento em que nos compreendemos melhor foi quando tentei matá-lo com uma faca de cozinha. Eu me lembro de passar dias inteiros cozinhando com N., talvez os dias mais agradáveis que passamos juntos. Ele me ensinou a fazer frango frito, a preparar recheio de arroz integral para aves, a picar endívias com alho e suco de limão e a temperar tudo que cozinhava com tabasco, molho Worcestershire e pimenta-do-reino. O primeiro presente que ele me deu foi um espremedor de alho, e também o segundo, porque quebrei o primeiro. Um dia, na Costa Leste, passamos horas preparando creme de camarão, depois tivemos uma discussão sobre a quantidade de sal necessária, e como havia passado várias horas bebendo Sazeracs, ele despejou um punhado de sal na sopa só para provar que tinha razão. Ficou parecendo uma salmoura, mas fingimos que estava ótimo. Atirar o frango no chão, ou as alcachofras. Comprar especiarias para cozinhar os mariscos. Ter conversas intermináveis sobre as possibilidades de um guisado de alcachofras com ostras. Depois que me casei, ele ainda me ligava de tempos em tempos para me pedir receitas.
Suponho que você ache que essa máquina é melhor do que a italiana. Suponho que você ache que tem toras de sequoia no quintal dos fundos. Suponho que você ache que sua mãe era a encarregada da venda de biscoitos do condado. Suponho que você ache que eu ocupo muito espaço em uma cama pequena. Suponho que você ache que a Schrafft’s vende folhas de chocolate. Suponho que você ache que o sr. Earl “Cotovelo” Reum tem mais personalidade do que eu. Suponho que você ache que não há lésbicas em Nevada. Suponho que você ache que sabe lavar moletons à mão. Suponho que você ache que Mary Jane implica com você e que as pessoas lhe servem uísque ruim. Suponho que você ache que não tem uma anemia perniciosa. Tome aquelas vitaminas. Suponho que você ache que as pessoas do Sul são um pouco anacrônicas.
— Eis uma mensagem que esse homem me deixou quando eu tinha vinte e dois anos.
Vivemos juntos por alguns anos, e acho que o momento em que nos compreendemos melhor foi quando tentei matá-lo com uma faca de cozinha
A primeira vez que estive no Sul foi no fim de 1942, início de 1943. Meu pai estava em Durham, na Carolina do Norte, e minha mãe, meu irmão e eu tomamos uma sucessão de trens lentos e lotados para nos juntar a ele. Em casa, na Califórnia, eu chorava à noite, havia perdido peso, queria ver meu pai. Achava que a Segunda Guerra Mundial era uma punição arquitetada especificamente para me privar da companhia do meu pai, havia compilado meus erros e, com um egocentrismo que naquela época beirava o autismo e que ainda me aflige em sonhos, quando tenho febre e no casamento, havia me declarado culpada.
Da viagem, me recordo sobretudo de um marinheiro que tinha acabado de ser torpedeado a bordo do Wasp, no Pacífico, e que me deu um anel de prata e turquesa, e que perdemos nossa conexão em Nova Orleans, não conseguimos um quarto e passamos uma noite sentados em uma varanda coberta do Hotel St. Charles, meu irmão e eu com trajes de verão de anarruga e minha mãe usando um vestido de seda com estampa xadrez azul-marinho e branca, sujo de terra por causa da viagem de trem. Ela nos cobriu com o casaco de visom que havia comprado antes de se casar e que vestiu até 1956. Nós estávamos viajando de trem em vez de ir de carro porque algumas semanas antes, na Califórnia, minha mãe emprestara o carro a uma conhecida que bateu com ele em um caminhão de alface nos arredores de Salinas, um fato a respeito do qual tenho certeza porque continua sendo motivo de rancor nas conversas do meu pai até hoje. A última vez que o ouvi mencionar esse acidente foi uma semana atrás. Minha mãe não disse nada, limitando-se a colocar na mesa mais uma mão de seu jogo de paciência.
Em Durham, ficamos alojados em um quarto com acesso à cozinha na casa de um pastor laico, cujos filhos comiam fatias grossas de pão cobertas de manteiga de maçã o dia todo e diante de nós se referiam ao pai como “reverendo Caudill”. À noite, o reverendo Caudill levava para casa cinco ou seis litros de sorvete de pêssego, e ele, a mulher e os filhos se sentavam na varanda da frente, comendo o sorvete direto do pote enquanto ficávamos deitados em nosso quarto, vendo nossa mãe ler e esperando pela quinta-feira.
Quinta-feira era o dia que podíamos pegar o ônibus para a Universidade Duke, que tinha sido ocupada pelos militares, e passar a tarde com meu pai. Ele nos comprava uma Coca-Cola no edifício do grêmio estudantil, nos levava para dar uma volta pelo campus e tirava fotos de nós que ainda tenho comigo e que admiro de tempos em tempos: duas crianças pequenas e uma mulher que se parece comigo, sentados à beira da lagoa, de pé ao lado do poço de desejos, fotos que sempre saíam com a luz estourada ou desfocadas e que, de qualquer forma, agora já estão desbotadas. Trinta anos depois, tenho certeza de que meu pai também devia passar fins de semana conosco, mas posso supor apenas que sua presença na casa pequena, sua tensão, sua privacidade agressiva e sua predileção por jogar dados a tomar sorvete de pêssego deviam me parecer tão potencialmente perturbadores que apaguei da mente todas as lembranças daqueles fins de semana.
…aprendi com as crianças do bairro a comer batatas cruas cobertas com a fina terra de debaixo de nossa casa. Hoje eu sei que a alotriofagia é algo comum no Sul subnutrido
Nos dias da semana que não eram quinta-feira, eu brincava com um conjunto de bonecas de papel que a sra. Caudill me emprestava, bonecas com o rosto de Vivien Leigh, Olivia de Havilland, Ann Rutherford e Butterfly McQueen, tal como haviam aparecido em E o vento levou…, e também aprendi com as crianças do bairro a comer batatas cruas cobertas com a fina terra de debaixo de nossa casa. Hoje eu sei que a alotriofagia é algo comum no Sul subnutrido, assim como sei por que na primeira quinta-feira em que fomos para Duke o motorista do ônibus se recusou a seguir com o automóvel até termos saído dos bancos de trás e ido para os bancos da frente, mas na época eu não sabia. Tampouco sabia que, para minha mãe, a temporada de alguns meses que passamos em Durham estava longe do ideal.
- Sul & Oeste
- Joan Didion
- HarperCollins Brasil
- 128 páginas
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