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Ilustração de Isabela Durão

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Conversas

Mariana Bueno: "É um país com poucas livrarias"

Coordenadora de pesquisa sobre o mercado editorial no Brasil aponta fatores ligados à crise do livro no país e destaca necessidade de expansão das livrarias

Leonardo Neiva 20 de Abril de 2025

Mariana Bueno: “É um país com poucas livrarias”

Leonardo Neiva 20 de Abril de 2025
Ilustração de Isabela Durão

Coordenadora de pesquisa sobre o mercado editorial no Brasil aponta fatores ligados à crise do livro no país e destaca necessidade de expansão das livrarias

Menos de um a cada seis brasileiros — mais precisamente 16% da população adulta do país — comprou um livro nos últimos 12 meses. Por outro lado, quem comprou, não ficou em um só. A maior parte dos consumidores ativos no setor adquiriu entre três e cinco volumes durante o período de um ano. Dado constante no mundo todo, as mulheres por aqui representam 61% desses compradores. E outra informação crucial para as livrarias, que hoje batalham para se manter de pé num mercado instável: 55% dos consumidores preferem comprar online, contra 39% que ainda optam pelas lojas físicas.

Esses são apenas alguns dos destaques do mais recente “Panorama do Consumo de Livros”, pesquisa voltada ao mercado editorial no Brasil, divulgada no início deste ano. Embora o número de consumidores tenha se mantido estável em relação à última edição da pesquisa, encomendada pela Câmara Brasileira do Livro à Nielsen BookData, o documento ilustra alguns dos desafios enfrentados atualmente pelo setor: por exemplo, a disparidade das vendas em livrarias na comparação com gigantes online como a Amazon e a falta de conexão dos mais jovens com lojas físicas.

Além da longa crise econômica que o Brasil tem vivenciado na última década, as mudanças também carregam fatores culturais e comportamentais importantes, como a ascensão dos streamings e a intensificação do uso das redes sociais. É o que aponta a economista e coordenadora de pesquisa econômica da Nielsen BookData, Mariana Bueno, em entrevista a Gama. “Isso também acontece lá fora, mas, quando a gente junta tudo, crise econômica, crise das grandes redes, mudança do comportamento das pessoas, percebe que no Brasil esse impacto negativo é maior.”

À frente de alguns dos principais estudos do setor, ela integra o comitê técnico da “Retratos da Leitura no Brasil“, que faz um raio-X do hábito de ler entre os brasileiros — e que, em sua sexta edição, divulgada em 2024, trouxe um dado preocupante: o país perdeu quase sete milhões de leitores nos últimos quatro anos.

 Divulgação

Apesar dos recordes negativos, Bueno enxerga uma demanda reprimida num país em que as livrarias ainda encontram dificuldade para ocupar espaços necessários. Em entrevista a Gama, a coordenadora de pesquisa aponta os fatores que hoje impactam a cadeia do livro no Brasil, também ressalta o potencial de crescimento em regiões pouco exploradas e destaca a relevância de apostar nos jovens leitores e no público feminino.

Até onde a gente pode trazer o leitor para mais perto usando os algoritmos a favor? Eu acho possível

  • G |Quais principais tendências dá para apontar em relação à última pesquisa voltada para o consumo de livros no Brasil?

    Mariana Bueno |

    A gente não costuma traçar tendência. O livro é um produto muito específico, diferente de shampoo, automóvel, de outros bens. Cada livro é um livro, é difícil comparar. Mas é interessante perceber como a não-ficção é muito forte no Brasil, quando comparado com outros países. Em especial autoajuda/desenvolvimento pessoal e religiosos, que têm uma força muito expressiva, algo que a gente vê desde sempre.

  • G |Os dados da pesquisa sobre produção e vendas refletem a crise que a gente tem visto no setor ao longo da última década?

    MB |

    O setor passou por um estrangulamento, ficou com a água no pescoço. Quando o governo deu a isenção do [imposto] PIS e Cofins, uma das contrapartidas do mercado era a redução do preço do livro. E isso de fato aconteceu. Em termos nominais, está mais caro, mas é preciso olhar a inflação. E, quando a gente deflaciona, vê que o livro ficou mais barato. Então, o setor cumpriu esse acordo com o governo. A expectativa do setor era que houvesse um ganho de escala, o que não aconteceu, não da forma como o setor esperava. Houve um aumento no número de exemplares vendidos, mas ele não foi suficiente pra efetivar esse ganho. Primeiro, porque o setor puxou esse preço muito para baixo. E segundo, porque a gente tem um problema de base leitora. Pouca gente lê, então pouca gente consome, o que limita esse ganho de escala. Outro fator é a crise econômica. No ápice da crise, o setor sente os efeitos de diversas formas. As pessoas não vão deixar de pagar luz, água, aluguel, para comprar livro. O setor de livros científicos, técnicos e profissionais sem dúvida foi o que mais sofreu. Houve o fim de programas governamentais nas universidades, o que acaba retirando alunos. Ou faz com que os que permanecem acabem comprando menos livros, ou acessem esse conteúdo de outra forma, muitas vezes pela pirataria. Há um processo de digitalização desses conteúdos também, as editoras fortalecem os modelos digitais desses livros cientificos. Há também a crise das duas grandes redes de livrarias, que tem um impacto fortíssimo para todo o setor e acaba transformando esse ecosistema. Enfim, o estrangulamento é resultado de muitos fatores, dificilmente existe uma única resposta para explicar fenômenos assim. E acho que a pesquisa reflete esse processo: o setor procurando recuperar esse preço, fazer com que água baixe do pescoço.

  • G |E as próprias transformações da sociedade nesse período fizeram diferença?

    MB |

    É um período de muita mudança de comportamento. Tem o fortalecimento dos streamings, o aumento do uso das redes sociais, as pessoas passam a dividir o tempo de forma diferente. Isso também acontece lá fora, mas, quando a gente junta tudo, crise econômica, crise das grandes redes e mudança do comportamento, percebe que no Brasil esse impacto negativo é maior. Todo mundo sofre, mas tem fatores que impactam mais uma categoria do que outras. A redução da renda tem um impacto muito forte em obras gerais, o livro que, na maioria das vezes, a gente compra por vontade própria, para lazer. Quando o bolso aperta, as pessoas cortam seus gastos, aquilo que pode ser cortado. Não deixam de pagar conta para comprar livro por prazer. Editoras de religiosos acabam sofrendo menos, os livros costumam ser mais baratos, então o imapacto da redução da renda acaba sendo menor. Não é que não exista, nem que essas editoras não sintam a crise, mas é diferente.

  • G |A pesquisa “Retratos da Leitura” aponta uma queda nos leitores em todas as faixas etárias, classes sociais. E quem lê também está lendo menos. Esses fatores que você citou ajudam a explicar essa tendência?

    MB |

    A pesquisa não traz a resposta de por que caiu, mas a gente pode imaginar que o fato das pessoas dividirem o tempo de maneira diferente tem impacto. É interessante perceber que tanto os leitores quanto os consumidores de livros usam mais a internet do que aqueles que não leem e não consomem. Aí a gente pode pensar: eles leem menos porque passaram a dedicar parte desse tempo à internet. Tenho refletido muito sobre a questão da internet. Até onde a gente pode trazer o leitor para mais perto usando os algoritmos a favor? Eu acho possível. Isso [a queda na leitura] provavelmente aconteceu com a popularização da televisão. A gente não tem dados, mas é difícil imaginar que isso não tenha acontecido. É claro, tem diferença. A televisão fica em casa. O celular está no seu bolso, então as pessoas fazem um uso muito mais intenso, ficam mais tempo conectados. O ponto é: como usar esse tempo a favor do setor? Como engajar leitores e não leitores? A pesquisa mostra que tem demanda para ser alcançada, talvez a internet possa ajudar.

  • G |O preço em termos reais caiu, e as pesquisas mostram que boa parte dos consumidores não considera os livros no Brasil nem caros nem baratos. Faz sentido então dizer que há margem para aumentar os preços? Ao mesmo tempo, considerando a queda nas vendas e no número de leitores, fazer isso é um risco?

    MB |

    Claro que há margem para aumentar o preço, e claro que há risco nisso. Se o setor pesar muito a mão e subir demais, isso pode ter um impacto negativo. O leitor falou que não acha o livro caro nem barato hoje, não significa que não vai achar caro amanhã. O preço não é uma variável aleatória, independente, que se explica por si. Ele tem relação com a renda, com o valor social do bem. Se eu montar uma concessionária de charretes, por mais que tenha um preço atrativo, qual é a chance de eu vender? Não tem valor social. E os dados mostram que nossa base leitora é baixa, mesmo entre aqueles que têm escolaridade, que estão nas classes mais altas. Então tem uma relação com o valor social aí. A gente também sabe que o Brasil tem uma renda baixa, inclusive comparado a outros países da América Latina. São questões que precisam ser levadas em consideração. Mas é preciso pensar também que, comparado com outros bens, o preço do livro não é alto. É equivalente a um combo da rede de lanchonetes mais famosa: um hambúrguer, uma batata e um refrigerante. Então não dá pra dizer que o livro é caro, mesmo quando a gente olha para a classe C. A classe C consome o combo, vai ao cinema, e a massa de leitores e consumidores de livros está na classe C.

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  • G |Há alternativas para esse possível aumento dos preços?

    MB |

    A [pesquisa] Panorama mostra que existe uma demanda reprimida. Tem gente que lê, mas não compra, pega emprestado do amigo, de algum familiar ou baixa da internet, e a gente sabe que a maioria desses livros baixados gratuitamente são piratas. Tudo isso é demanda, pirataria é demanda. Existem pessoas que pegam emprestado da biblioteca, aí também tem demanda. É preciso pensar em estratégias para alcançar essas pessoas. Com a crise das grandes redes, houve uma redução dos pontos físicos de venda. A gente sabe que abrir novos pontos leva tempo, que a expansão de livrarias leva tempo. É preciso planejamento, achar o lugar, contratar, treinar as pessoas e tudo mais. Isso não se faz do dia para a noite. Mas tem espaço para expansão. A classe C nas grandes cidades, em sua maioria, não está no centro expandido. Ela está nas bordas. As novas livrarias de rua não estão lá. Em São Paulo, por exemplo, estão concentradas na região da Paulista, Pinheiros, Santa Cecília. É claro que a abertura dessas livrarias foi importante para o setor, não estou negando isso. Mas a Panorama indica que é preciso pensar para além dessas regiões. E não estamos falando apenas da forma de consumo, se a compra será na loja online ou física, há também uma relação com o preço do livro. Para uma pessoa que mora num bairro mais distante dos centros expandidos, o livro fica mais caro, porque tem o transporte até a loja, a alimentação e tudo mais. E a gente sabe que o custo de qualquer coisa nessas regiões é mais alto. Tudo isso está embutido no gasto que a pessoa terá para adquirir o livro.

  • G |Dá para pensar nessa falta de livrarias em nível nacional? Elas ainda se concentram nas regiões Sudeste e Sul?

    MB |

    O Nordeste tem bons indicadores de leitura e consumo de livro, em alguns casos melhores do que outras regiões. É claro, ainda dentro da realidade do país. O que quero dizer é que o Nordeste não deve em nada para outras regiões. É a segunda região mais populosa e tem menos livraria que a região Sul. O percentual mais alto de quem compra na internet está no Nordeste. Também são as pessoas que dizem que deixam de comprar porque não tem livraria perto. Tudo isso está conectado. Então, tem demanda ali, uma demanda que não está sendo atendida, ou está sendo atendida em grande parte pelas lojas online. Livraria tem um papel super importante. Por exemplo, a pandemia mostrou que lançar livro na internet é muito mais difícil. Então a expansão do número de livrarias é importante para o setor. A questão é onde serão e qual o modelo dessas livrarias. A gente diz que a Panorama mostra que quiosque de shopping pode ser uma alternativa. O aluguel é mais barato, precisa de menos giro, um número menor de funcionários… enfim, tem um custo mais baixo. Não precisa ser livraria grande.

  • G |Muitas livrarias destacam que marketplaces online como a Amazon têm uma política predatória. Tem um dado que mostra que 49% das pessoas comprariam em lojas físicas caso os preços fossem iguais. Isso justifica a necessidade de uma lei que equipare esses valores?

    MB |

    Sim, está em linha com aquilo que o setor vem pedindo. O setor tem batalhado pela implementação da Lei Cortez, em que, durante 12 meses, há um limite para os descontos dos lançamentos. Ou seja, nos primeiros 12 meses de vida do livro, ele será vendido por todo mundo por um preço equivalente. É uma lei que existe em outros países e que acaba fortalecendo as livrarias de rua.

  • G |As editoras recheiam seus eventos de lançamento, e ao mesmo tempo, o número de leitores vem encolhendo…

    MB |

    O número de lançamentos é menor do que era anos atrás. Nós temos alertado o setor sobre isso, por conta da Lei Cortez. A gente acha que a lei tem impacto, que é positiva, mas é importante levar isso em consideração, porque o impacto pode ser menor do que o esperado.

Os jovens adultos vão em turma atrás de autor, de cosplay, gostam de entrar no stand. Por que será que esse público não está na livraria?

  • G |Os mais jovens são os que menos compram em livrarias. Isso é preocupante em relação à perda de consumidores? É preciso encontrar formas de atrair esse público?

    MB |

    Acho que é algo para o setor pensar. Quando a gente fala em novos pontos de venda, também tem que pensar nesses fatores. Quanto mais nova a pessoa, mais digitalizada. É quem compra mais online e lê mais livros digitais. Também é interessante que o principal público da Bienal é de jovens adultos. É um público que vai em turma atrás de autor, vai de cosplay, gosta de entrar no stand, tirar foto. Por que será que esse público não está na livraria? Quem são esses jovens? De que classe social? Talvez eles não tenham uma livraria perto e consomem online. O online cumpre um papel importante num país que conta com poucas livrarias. Para deixar claro, não estou dizendo que as livrarias não são importantes, ao contrário. O que digo é que o online possibilita que o livro chegue até as pessoas que não têm livraria por perto.

  • G |Hoje, como você vê o consumo de livros digitais?

    MB |

    Antes se falava que o livro digital ia substituir o físico. Hoje o setor sabe que isso não irá acontecer. O setor fala em leitores multiplataforma, que leem tanto livros impressos quanto digitais e seus diferentes formatos. O digital muitas vezes é um filtro para a biblioteca que o leitor quer. O leitor gosta de ter o livro físico dos autores que gosta. A pesquisa do consumo é recente, a primeira edição foi em 23, então a gente não tem um histórico ainda. Mas, na pesquisa “Produção e Vendas”, a gente vê que o faturamento com esse tipo de conteúdo digitalizado tem crescido. O percentual do faturamento das editoras com conteúdo digital tem crescido.

  • G |Um dado constante é que as mulheres leem e compram mais livros. Qual o impacto disso para a cadeia editorial?

    MB |

    A gente vê isso em outros lugares do mundo: as mulheres são mais leitoras. E a “Retratos” [do Livro] traz um outro dado: quem influencia a ler. Temos fundamentalmente dois personagens, a mãe e o professor, e a gente sabe que professor é uma categoria majoritariamente feminina. Então quem mais influencia são mulheres. Sabemos que as mulheres sofrem em relação à renda, que ganham menos que os homens, mesmo quando exercem a mesma função. Também sabemos que temos um número grande de mães solo, que muitas fazem dupla jornada. Enfim que há uma desigualdade de gênero. Então, por um lado, é preciso pensar em como esse grupo é estratégico do ponto de vista da demanda, porque quanto maior o número de livros comprados, maior é o percentual de mulheres consumidoras. Por outro, existem elementos interessantes em relação ao conjunto de respostas que a “Panorama” traz sobre as motivaçãoes e desmotivações para comprar um livro. Porque elas conseguem ler, comprar livros, incentivar e formar leitores mesmo com menos tempo disponível— como disse, muitas fazem jornada dupla e têm uma carga maior no cuidado dos filhos.

  • G |Quais caminhos as últimas pesquisas apontam para as editoras e livrarias, o setor como um todo no Brasil?

    MB |

    Existe uma questão mais a longo prazo, que chamamos de restrição estrutural de demanda. Ou seja, uma demanda que não se realiza em função de alguma questão estrutural. No caso do livro, um número relevante de pessoas não têm capacidade leitora. O INAF [Indicador de Alfabetismo Funcional] mostra que uma grande parte da população, em algum grau, é considerada analfabeta funcional. Então, estamos falando de uma transformação que leva tempo, de uma política de Estado, não de governo. O setor sempre se envolveu em questões como essa. Porque, para o setor, a gente está falando de demanda e, para o Estado, da garantia do direito à cultura, ao conhecimento, à leitura e à escrita. Por outro lado, existe uma demanda reprimida. Volto a insistir, é um país com poucas livrarias. Sabemos que é um negócio difícil. Tinha um editor que dizia que o livro é um mercado de tostões. Mas as pesquisas mostram que há demanda para ser atendida, então é uma possibilidade. É também uma possibilidade de gerar emprego e renda. O setor pode pensar em como incentivar a abrir novas livrarias. O online cumpre uma função, ele tem um papel importante para as editoras e para os consumidores. As editoras querem que o livro chegue ao maior número de pessoas e os consumidores querem ter onde comprar o livro que desejam. E a entrada de novos players online deve trazer um equilíbrio interessante. O online possibilita que o livro alcance pessoas que hoje não têm onde comprar, a gente precisa pensar nisso.

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